July 31, 2009

A macaca tá certa!


Autobiografia da chimpanzé Chita é finalista do prestigiado Booker Prize

Fernando Duarte Correspondente • Londres


Obviamente, o fato de uma autobiografia da macaca Chita, a inseparável companheira de Tarzan, ter aparecido na lista inicial de 13 indicados ao Booker Prize, o mais prestigiado prêmio literário do Reino Unido, ao lado de nomes habituais em disputas de honrarias, como o sul-africano J.M. Coetzee, foi uma piada por demais tentadora nas manchetes de jornais. No entanto, mais que um engenhoso trabalho do escritor James Lever, que bancou o ghost-writer, o livro “Mim, Chita”, lançado em Londres em outubro do ano passado, vai muito além de um mero exercício de imaginação sobre a vida de um dos animais, na verdade um macho, que interpretaram o papel nas várias encarnações das aventuras em celulóide do homem-macaco. Afinal, assim como uma infinidade de colegas humanos de ofício, o chimpanzé mais famoso do cinema também experimentou a montanha-russa da vida de celebridade, incluindo as batalhas contra excessos — como o consumo de cigarros e álcool, no caso da Chita retratada por Lever.

Rex Harrison vira “odioso bêbado impotente”

Concentrando-se na história do animal mais clássico a interpretar Chita, que ainda está vivo (ao contrário, por exemplo, dos Tarzan e Jane mais conhecidos, Johnny Weissmüller e Maureen O’Sullivan, mortos em 1982 e 1998, respectivamente) e mora na cidade californiana de Palm Springs, Lever aglutina as histórias do macaco. A começar pelo fato de que o mesmo importador de animais responsável por sua captura na selva liberiana, em 1932, mais tarde ficaria famoso como fornecedor de primatas para as primeiras experiências do programa espacial americano.

Há bastante licença poética, claro, pois o livro é uma autobiografia com declarações e fofocas do chimpanzé, incluindo sarcásticas descrições de colegas famosos, como o ator Rex Harrison (Chita o chama de “odioso bêbado impotente”).
Charles Chaplin, por exemplo, ganha a alcunha de “superestimado”.


Tudo escrito como se o chimpanzé tivesse incorporado uma combinação transdisciplinar em termos de meios artísticos: à verve de John Cleese, do grupo cômico Monty Python, junta-se o sarcasmo seco de Charles Bukowski.


Há, ainda, situações fictícias, mas não inverossímeis, como as elaboradas orgias envolvendo alguns dos galãs mais famosos de Hollywood, e cenas capazes de fazer o mais libidinoso dos senadores da Roma Antiga corar. Porém, as cutucadas de Lever/Chita ao chamado culto à celebridade e ao comportamento pueril e afetado das primas-donas de Hollywood, assunto não apenas real como atual, também ajudaram a cativar a comissão julgadora do Booker.

— Fiquei feliz em ver os jurados reconhecendo o valor da proposta do livro — disse Lever ao jornal “Daily Telegraph”, antes de fazer uma graça afirmando que Chita, atualmente com 77 anos e lutando contra as complicações do diabetes, “’não quis comentar a notícia”.


O livro também emociona, sobretudo quando o chimpanzé fala de sua devoção a Johnny Weismuller, o campeão olímpico de natação que se tornou o mais famoso Tarzan. De uma mera oportunidade para um tabloide sensacionalista, o encontro entre Chita e seu ex-mestre, então confinado a uma cadeira de rodas por uma série de derrames, ganhou uma força dramática pela qual vários críticos britânicos confessaram ter sucumbido. E o fato de que, ao contrário de outros animais famosos, da cadela Lassie ao sapo artificial Caco, Chita até hoje não ter uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood, reforça o lado mais triste da história do primata, sobretudo pelas entrelinhas em que Lever aborda o tratamento pouquíssimo nobre dispensado por Hollywood a seus atores animais, numa época de rara vigilância de autoridades.

Macaco diz fingir atuar, como Robert de Niro

Surras e choques elétricos, por exemplo, eram procedimento comuns nos treinamento de primatas, que ao menos não sofriam tanto quanto os cavalos — estes eram vítimas fatais constantes em filmes épicos ou de faroeste, por exemplo.

Assim, “Mim, Chita” surgiu como um tocante e bem-humorado tributo a uma rara testemunha da história oficial e oficiosa do cinema. Os momentos de lágrimas se equilibram com as gargalhadas, em tiradas como a confissão primata de que durante anos ele “apenas fingiu estar atuando, assim como aconteceu com Robert de Niro”. A publicidade gerada pela indicação ao Booker Prize já poderá ser de bom tamanho para que mais gente vá às livrarias e conheça a história de Chita.

“ESTE ERA O LIVRO QUE EU queria escrever. Não importa o quão obscuro o tema ou quão dolorosas as lembranças, não importa o quão estarrecedor e estúpido o comportamento de algumas pessoas — como Esther Williams, Errol Flynn, "Red" Skelton, "Duke" Wayne, Maureen O’Sullivan, Brenda Joyce —, meu desejo era escrever sem amargura, estereótipos ou acerto de contas. Era celebrar o que tem sido uma vida de sorte, muita sorte, e tentar procurar as coisas boas em todos as pessoas incríveis que eu tive o privilégio de conhecer. Este livro foi escrito com gratidão e amor para toda a sua espécie e por tudo o que vocês fizeram para os animais e para mim. Um obrigado. Um livro de amor.”
Trecho de “Mim, Chita”,
ainda inédito no Brasil




O Globo, 31 de julho de 2009

July 30, 2009

Filme acompanha baile misto nos EUA

Documentário da HBO retrata preconceito racial a partir de formatura de negros e brancos no Mississipi

JANAINA LAGE
DE NOVA YORK

No ano em que os EUA elegeram o primeiro presidente negro da história do país, uma escola de segundo grau de uma pequena cidade do Mississipi se prepara para ter o primeiro baile de formatura reunindo alunos brancos e negros. Essa é a história do documentário "Prom Night in Mississippi" (baile de formatura no Mississipi, em tradução livre), que estreou neste mês na HBO americana, após exibição em Sundance -ainda não há previsão de lançamento no Brasil.
Desde 1954, a Suprema Corte determinou a integração entre brancos e negros em salas de aula. Na escola secundária de Charleston, município com menos de 3.000 habitantes, os negros só passaram a fazer parte dos alunos em 1970.

Até o ano passado, eles não tinham direito de participar do baile de formatura com os brancos, apesar de representarem 70% dos alunos. Na prática, a escola tinha dois bailes de formatura, um de brancos e outro de negros, cada um com seus respectivos reis e rainhas.
Morador de Charleston, o ator Morgan Freeman, de filmes como "Um Sonho de Liberdade", decidiu intervir. Em 1997, se ofereceu para pagar pela formatura desde que os alunos aceitassem ter um baile integrado. A oferta foi recusada.

No ano passado, ele voltou a apresentar a proposta. Os preparativos para a festa são a base do filme, que acompanha as tensões, esperanças e receios dos formandos e dos pais. Muitos se dividem entre atender a orientação dos pais e o receio de serem hostilizados pela comunidade branca da região.

Questionada sobre relações interraciais, por exemplo, uma aluna branca afirma: "Fui criada para só namorar com a minha própria raça, não quero decepcionar minha família". Outra relata ter sido descartada em entrevistas de emprego por andar com brancos e negros.

Charleston é uma cidade pobre. Mais de 34% da população vive abaixo da linha de pobreza, mas, de acordo com o documentário, é um lugar apegado a tradições. Na ida para o baile, os estudantes aguardam na frente de casas simples a chegada de uma limusine para levá-los à festa. O "apego às tradições" foi a justificativa empregada por parte dos pais de alunos brancos que resolveram manter um pequeno baile em separado. Eles evitam a palavra racismo.
Segundo o diretor canadense Paul Saltzman, Charleston parece uma cidade perdida no tempo. "O curioso é que o baile integrado transcorreu tranquilamente, enquanto no baile dos brancos dois garotos se envolveram numa briga", disse.

Ainda é cedo para dizer se a integração é para valer. Neste ano, um novo baile misto foi realizado, mas um grupo de pais de alunos brancos insistiu em fazer festa em separado.

Folha, 26 de julho de 2009

July 21, 2009

Quebraram. Mas ganharam

CLÓVIS ROSSI

BASILEIA - Lembra-se dos velhos tempos em que os bancos quebraram, os governos do mundo correram para socorrê-los com uma catarata de dinheiro e dez de cada dez analistas diziam que nunca mais o sistema financeiro seria o mesmo? Se você se lembra, melhor esquecer. Está tudo começando a voltar ao que era antes, do que dão eloquente testemunho textos de anteontem no "Financial Times" e de ontem no "Guardian".

"A comunidade financeira de Londres está sacudindo a poeira e voltando ao negócio de fazer dinheiro", diz o "Guardian". Tanto que, nos escritórios da Goldman Sachs, o pessoal já foi avisado para esperar um dos anos mais lucrativos de todos os tempos.

O Barclays, só neste mês, está pagando algo em torno de 730 milhões (R$ 2,4 bilhões) em bônus para cerca de 410 empregados. O "Financial Times" vai na mesma direção: "Investidores e grupos de serviços profissionais britânicos se dizem preocupados com a possibilidade de que mercados de ações bombando permitirão à City londna contornar as consequências da crise financeira global sem fazer mudanças fundamentais".

Enquanto isso, em "O Globo", lia-se que "a indústria financeira dos países desenvolvidos recebeu em um ano quase dez vezes mais recursos do que todos os países pobres em quase meio século, segundo análise feita por especialistas da Campanha da ONU sobre as Metas do Milênio". Em números: US$ 2 trilhões em 49 anos para os pobres, US$ 18 trilhões nos 12 meses mais recentes para os bancos.

Ah, ainda tem a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) avisando que, com magro 1% da catarata de dinheiro alocada para o sistema financeiro, daria para alimentar todos os famintos do mundo. Os "brancos de olhos azuis" ganharam de novo.

Folha de São Paulo

July 19, 2009

Juiz proíbe que Simão fale de Juliana Paes


Atriz alega que teve a honra atingida; colunista vê censura e diz que decisão tolhe liberdade de expressão


DA REPORTAGEM LOCAL

O juiz João Paulo Capanema de Souza, do 24º Juizado Especial Cível do Rio de Janeiro, determinou que o colunista José Simão, da Folha, se abstenha de fazer referências à atriz Juliana Paes, confundindo-a com a personagem "Maya", da novela "Caminho das Índias", da Rede Globo, sob pena de multa de R$ 10 mil por nota veiculada nos meios de comunicação.
A atriz moveu duas ações de indenização, uma contra o jornal e outra contra o colunista. Ela alega que Simão "vem publicando reiteradamente nos meios de comunicação em que atua, sobretudo eletrônicos (internet), textos que têm ultrapassado os limites da ficção experimentada pela personagem e repercutido sobre a honra e moral da atriz e mulher e sua família".

Anteriormente, a atriz havia ajuizado ação só contra a Folha na 4ª Vara Cível do Rio de Janeiro, mas não obteve a medida liminar. No último dia 6, o juiz Carlos Alfredo Flores da Cunha indeferiu o pedido.

Segundo Flores da Cunha, "atriz famosa, a autora será alvo de comentários e críticas, isto é inevitável. E não é possível, de antemão distinguir o que é mera informação, crítica jornalística, comentário irrelevante, ofensa etc. Tratando-se, portanto, de matéria controvertida, desacolho o pleito de antecipação de tutela".

Ao conceder a antecipação de tutela, o juiz Capanema de Souza disse não ver "ofensa ou aspecto pejorativo" nas considerações do colunista "sobre a "poupança" da atriz ou sobre o fato de sua bunda ser grande", já que "sua imagem esteve e está à disposição de quem quisesse e ainda queira ver", e qualificá-la "nos limites do tolerável".

Mas considerou que o colunista ofendeu "a moral da mulher Juliana Couto Paes, seu marido, sua família", ao "jogar com a palavra "casta" e dizer que Juliana "não é nada casta"."

José Simão diz que tomou conhecimento das ações ao ler a coluna do jornalista Ancelmo Gois, na edição desta quinta-feira no jornal "O Globo".

"É censura. A pessoa não pode determinar quando e o que falar dela. Isso tolhe totalmente a liberdade de expressão", afirmou. "Na hora em que estava escrevendo, achava que estava elogiando a atriz. Não quero me retratar", disse Simão.

Segundo o colunista, "a imagem que Juliana Paes passa para o Brasil é que ela é a "gostosa", e que todo homem fica "babando". Não vejo por que o termo "casta" ofende uma mulher moderna, liberada, atriz da Globo. Para mim, casta é pudica, e eu não admiro pessoas castas. É coisa medieval", afirmou.

As advogadas Taís Gasparian e Mônica Galvão, que representam a Folha, consideram que a decisão do juiz Capanema de Souza "trata o humor como ilícito e, no fim das contas, é a mesma coisa que censura".

Folha, 17 de julho de 2009

Araguaia: militares acusados de sequestro de crianças

Parente de vítima diz que sumiram três filhos de guerrilheiros com moradoras da região

Bernardo Mello Franco Enviado especial

MARABÁ (PA). A exemplo do que ocorreu na Argentina, a ditadura militar brasileira é acusada de sequestrar três crianças durante a Guerrilha do Araguaia (1972-1975). A acusação foi feita ontem pela empresária Mercês Castro, irmã do desaparecido político Antonio Theodoro de Castro, o Raul, depois de ouvir relatos de mateiros que, na ocasião, acompanharam as tropas do Exército. Um dos bebês seria fruto de relacionamento entre o guerrilheiro e uma moradora da região, ainda não localizada.

Segundo os relatos dos camponeses, os guerrilheiros deixaram oito filhos na região, incluindo os três que teriam sido raptados na fase final do conflito no Araguaia, que matou 69 guerrilheiros. A acusação, que convenceu integrantes civis do grupo que busca ossadas na área, pode abrir uma nova polêmica na discussão sobre o episódio.

— Agora, vai começar outra luta. Queremos saber onde estão essas crianças — disse Mercês Castro.

A empresária já tinha ouvido depoimentos de camponeses sobre o suposto rapto de uma filha de Raul, com idade entre oito e nove meses. No domingo, a versão foi confirmada a ela pelo mateiro José Maria Alves da Silva, o Zé Catingueiro.

Ele acusou os militares de sequestrar mais duas crianças: uma menina negra de 4 anos, que seria filha do guerrilheiro Osvaldo Orlando Costa, o Osvaldão; e uma terceira cujo pai ele não identificou.

Mateiro diz ter visto cicatriz no tórax do guerrilheiro Para Mercês, o Zé Catingueiro foi testemunha da morte e do enterro clandestino do corpo do irmão dela. Mercês ficou convencida quando o mateiro fez referência a uma cicatriz no tórax do guerrilheiro, consequência de uma cirurgia no pulmão, que Raul não gostava de exibir.

Zé Catingueiro atribuiu a morte do guerrilheiro, na época com 25 anos, ao major Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió. Disse que Raul foi morto pelo oficial com um tiro no rosto. Depois, soldados teriam metralhado Raul e um outro preso, Cilon da Silva Brun, o Simão. As execuções teriam ocorrido no fim de 1974, e os corpos estariam enterrados na Fazenda Matrinchã, em Brejo Grande (PA). Emocionada, Mercês disse ter ódio de Curió, e defendeu a abertura de processos contra militares.

— Não o chamo de Curió para não ofender o pássaro. Para mim, ele é um psicopata, um doente. Ele fazia o trabalho sujo, e fazia com prazer.

Paulo Fonteles Filho, que representa o governo do Pará nas buscas, ouviu o depoimento de Zé Catingueiro e disse acreditar na acusação.

— É uma denúncia muito grave, que precisa ser investigada.

As histórias de sequestro de crianças correm há algum tempo, mas nunca tinham sido contadas com tanta clareza. As famílias e a sociedade brasileira precisam saber a verdade.

Um relatório entregue por Curió ao jornal “O Estado de S.Paulo”, mês passado, já indicava o sequestro de um filho de Osvaldão, em 1972.

Jobim entrega comando das buscas a civis Ontem, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, entregou a assessores civis o comando das buscas. Nomeou o consultor Cleso Fonseca Filho coordenadorgeral, Vilson Vedana coordenadorsubstituto, e Edmundo Muller Neto coordenador dos trabalhos de campo. O general Mário Lúcio Alves de Araújo virou chefe da equipe de apoio logístico, função que ele já dizia desempenhar, apesar de figurar formalmente como coordenador da equipe.

O Globo, 14 de julho de 2009



Artistas e críticos pedem política de ocupação das áreas públicas do Rio

Abaixo-assinado será enviado para a prefeitura e o governo do Estado


Suzana Velasco


foto de Monica Imbuzeiro

Artistas, críticos de arte e curadores estão organizando um abaixo-assinado que, destinado à prefeitura e ao governo do estado, pede a criação de uma política de ocupação das áreas públicas do Rio por monumentos e obras de arte. O objetivo é criar critérios para que as decisões de encomendar ou aceitar a doação de esculturas ao ar livre não fiquem restritas ao gosto pessoal dos governantes.

Segundo o artista plástico Carlos Zilio, um dos criadores do abaixo-assinado, o movimento não é direcionado a alguém em particular, e sim à proliferação de esculturas na cidade desde o último mandato de Cesar Maia na prefeitura.

Na próxima quarta-feira, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage sediará um debate sobre o problema, organizado pelo artista plástico João Magalhães, com a participação da secretária estadual de Cultura, Adriana Rattes, do subsecretário de Patrimônio da prefeitura, Washington Fajardo, dos críticos Fernando Cocchiarale, Paulo Herkenhoff e Lauro Cavalcanti e dos artistas Ernesto Neto e Everardo Miranda.

— Desde o século XVIII, o Rio de Janeiro manteve um nível bastante razoável de ocupação do espaço público. Você pode gostar ou não de Mestre Valentim, de Bernardelli, mas são artistas representativos.

Nas últimas décadas, a decadência da cidade levou por água abaixo esse nível de intervenção pública. Chega o prefeito e põe uma escultura de um caricaturista porque acha engraçado, um amigo do governador ou uma senhora beneficente doa uma escultura. O Rio virou a casa da mãe Joana.

Zilio já fez parte de uma comissão criada no segundo governo de Cesar Maia, pouco antes de sua reeleição em 2004. Formada por críticos de arte, como Fernando Cocchiarale, Paulo Herkenhoff e Lauro Cavalcanti, e artistas como Ernesto Neto e Waltercio Caldas, a comissão deveria estabelecer critérios para a ocupação da cidade com esculturas.

Na época, a prefeitura sofria fortes críticas pela proliferação de obras da tal “senhora beneficente”, Marli Azevedo, conhecida como Mazeredo, que doou esculturas para a cidade, aceitas sem questionamento.

“A gente estava ali como fantoches”, diz Cocchiarale

Quando formada, a comissão conseguiu retirar algumas esculturas de Mazeredo da orla de Copacabana, mas outras ações, mesmo anunciadas após as eleições, não foram cumpridas, como a retirada do corneteiro criado pelo caricaturista Ique, e instalado na esquina das ruas Garcia D‘Ávila e Visconde de Pirajá, em Ipanema. Segundo Zilio, em pouco tempo ficou claro que a comissão não tinha qualquer poder efetivo. Cocchiarale conta que nada do que os integrantes diziam era levado em conta pela prefeitura, por isso o grupo foi naturalmente extinto.

— A comissão foi se desfazendo, porque a gente estava ali como fantoches — diz o crítico.

— Não conseguimos impedir o cabeção do Getúlio Vargas na Rua do Russel, os Drummonds, Braguinhas e Mazeredos... Existe uma concepção antiga de monumento público, uma política provinciana de pôr estatuazinha em tudo quanto é lugar.

Cocchiarale já fez parte de uma outra comissão, que, criada em meados dos anos 1990, no primeiro governo Cesar Maia, levou às ruas da cidade esculturas de importantes artistas brasileiros, como Waltercio Caldas, Ivens Machado e José Resende.

Desde então, a maior parte das obras que a cidade recebeu são peças de homenagem — como a de Carlos Drummond de Andrade na orla de Copacabana —, em bronze, que, para Cocchiarale, tentam reproduzir o padrão das esculturas acadêmicas, mas não têm a mesma qualidade.

— O Rio tem esculturas de influência neoclássica excelentes, como o D. Pedro I da Praça Tiradentes. A cidade não precisa de peças mal feitas — afirma Cocchiarale. — Um Drummond ali, acho até interessante, mas há uma proliferação de obras. Isso não significa que as pessoas homenageadas não mereçam, mas a homenagem é muito fraca. As esculturas são feias, duras, sem movimento. Melhor pôr o Playmobil.

Para pensar na formação de uma comissão, com poderes efetivos, ou de outras formas de criar critérios para a ocupação da cidade e do estado do Rio, o artista plástico João Magalhães, professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, está organizando o debate de quarta-feira.

— Hoje nem sei se comissão é solução para esse problema — afirma Zilio. — Político que não quer fazer nada faz comissão ou reforma. O estado e o município precisam se conscientizar da importância da questão.

Governos aceitam doações sem critérios de qualidade

Para Cocchiarale e Magalhães, um dos principais problemas é a ideia de que se deva aceitar tudo o que é doado, tanto nos museus quanto nas áreas públicas: — Pessoas se oferecem para doar e instalar as obras, e isso é aceito imediatamente, independentemente de qualquer critério artístico — diz Magalhães. — A ocupação do espaço é aleatória, não tem preocupação com a qualidade e, em vez de contribuir, deseduca.

Para quem mora aqui e ama esta cidade é muito triste passar pela esquina da Garcia D’Ávila com a Visconde de Pirajá.

O Globo, 19 de julho de 2009

July 9, 2009

Vai dar o maior Fuzuê!



João Sette Camara

Todos os becos levam ao fuzuê.
A frase, que poderia ser ouvida num desfile de carnaval do Cordão da Bola Preta, serve bem para descrever o Fuzuê, casa comandada pelo ator e produtor José Loyola, na Praça Tiradentes. Primeiro projeto do programa Monumenta — iniciativa do Ministério da Cultura para conjugar recuperação e preservação do patrimônio histórico com desenvolvimento econômico e social — a sair do papel, o lugar, aberto dia 13 de maio, já tem uma programação interessante e promete dar o que falar no futuro.

Com o objetivo de criar no sobrado histórico de três andares um boteco que reunisse gastronomia e arte, Loyola e seu sócio acabaram fazendo um misto de restaurante, bar e minicentro cultural, que está aberto aos novos talentos de toda e qualquer manifestação artística.
Às segundas-feiras à noite, costuma rolar por lá uma inusitada seresta comandada pelo ator Conrado Freitas, de 84 anos, que é acompanhado por Adilson Werneck. Às terças, há um encontro de poesia e às quintas, o terceiro andar da casa é tomado pela dança de salão.

Durante o fim de semana, a coisa fica ainda mais animada: a partir de hoje começam a rolar festas em que o tema principal é o zouk, gênero musical caribenho que chegou ao Brasil pelo Pará e que conquista cada vez mais adeptos no Rio. Já no sábado, a programação é bem carioca: feijoada com roda de samba. Em tempo: todas as apresentações têm couvert artístico que varia de R$ 5 a R$ 15. A feijoada, para dois, é R$ 22,30.

O Fuzuê acabou de abrir, e poucas vezes vi um lugar tão simpático e disponível a qualquer um que queira mostrar o seu talento: basta chegar lá e fazer uma proposta. Acho que esse fuzuê ainda vai longe.

Fuzuê: Rua Pedro I 20, Centro — 2221-3486. Seg a qui, das 11h às 22h (o preço de acordo com a atração). Sex e sáb, das 11h até o último cliente. R$ 10. Livre.


Reproduzido do suplemento RioShow, jornal O Globo

Sindicância culpa editora e consultora por livro ''impróprio''

Investigação poupa secretaria; obra com palavrões seria destinada a alunos da 3.ª série de SP

A Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), em São Paulo, decidiu multar a consultora que havia sido contratada para selecionar os livros do Programa Ler e Escrever. Também concluiu que Via Lettera Editora, que publica a obra Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol, omitiu à Secretaria de Estado da Educação o conteúdo do título, que foi considerado "impróprio" pela pasta, e, por isso, também seria responsável pelo erro.

Criado em 2007 como uma das marcas da gestão do governador José Serra (PSDB) na educação, o Ler e Escrever é um programa voltado para o reforço da alfabetização de crianças de 6 a 10 anos matriculadas em turmas da 1ª a 4ª série do ensino fundamental. Das 818 obras compradas para o programa, 6, entre elas a Dez na Área, foram retiradas após chegarem às escolas - mas não às crianças - por causa de "inadequação para a faixa etária" e "conteúdo preconceituoso". O resultado da sindicância não traz informações sobre os outros livros, de outras editoras.

Três das 11 histórias do livro, dirigido a adultos, trazem relatos que foram considerados impróprios para crianças porque têm palavrões e piadas com conotação sexual, mas que apenas foram identificados após educadores apontarem os casos. Também houve revisão das obras que ficaram após a constatação do problema.

O valor da multa a ser aplicada para a consultora ainda não foi definido. De acordo com nota divulgada ontem à noite pela Secretaria da Educação, "a consultora leu o prefácio do livro, assinado por um ex-jogador consagrado, fez boa avaliação do projeto gráfico e averiguou histórias aleatoriamente, sem atentar para os relatos impróprios contidos em 3 das 11 histórias." A sindicância da FDE concluiu que a Via Lettera omitiu-se sobre o conteúdo. Segundo a secretaria, a empresa tinha conhecimento de que o livro se destinava a alunos da 3ª série. A fundação vai cobrar da editora o valor dos livros adquiridos e as despesas do seu recolhimento das escolas estaduais. A pasta diz que a medida ainda pode ser contestada pelas partes.

NOVAS MEDIDAS

Além de apontar os responsáveis pela compra do material, a sindicância também propõe agora a mudança de procedimentos para a compra de livros pela secretaria.

O comunicado da pasta informa que serão implementadas medidas como a emissão de conclusão fundamentada de analista para cada obra quanto a sua adequação ou não ao programa a que se destina, baseada em critérios claros e objetivos.

Também serão fixados limites quanto ao número de obras a serem analisadas por cada técnico, além de ser solicitada dos fornecedores uma resenha de cada livro oferecido, acompanhada de declaração explícita de representante legal da empresa responsabilizando-se pelo conteúdo das obras encaminhadas à análise.

A reportagem tentou entrar em contato com a Secretaria de Estado da Educação, com a FDE e com editora responsável pelo livro. Nas três instituições, no entanto, ninguém foi encontrado para comentar o resultado da sindicância.

ENTENDA O CASO

Em 19 de maio, a Secretaria de Estado da Educação mandou recolher 1.216 exemplares do livro Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol, compilação de quadrinhos brasileiros destinada para alunos da 3.ª série do ensino fundamental. A obra, para adultos, contém palavrões, frases de duplo sentido, expressões sexuais e referências à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). O governador José Serra mandou abrir sindicância. A secretaria, em nota, afirmou que "a escolha do livro foi um erro" e que "assim que a falha foi constatada, foi determinado o recolhimento imediato". A editora Via Lettera responsabilizou a secretaria pela seleção do livro

Dois dias depois, o promotor Saad Mazloum instaurou inquérito na Promotoria da Cidadania do MP para investigar o mau uso de recursos públicos e eventuais atos de improbidade administrativa na compra do livro. Por cada exemplar, o governo teria pago R$ 21,86, o que totalizaria despesa de R$ 37 mil. Outros 5 dos 818 livros que fazem parte do programa Ler e Escrever foram excluídos .

Estadão, 9 de julho de 2009

July 8, 2009

Calamidade nacional

Jornalista americano prepara reportagem sobre tráfico no Rio para 'New Yorker' e diz que cidade é uma 'calamidade nacional'

Publicada em O Globo - 08/07/2009 às 09h00m

entrevista por André Miranda

RIO - Daqui a poucas semanas, o Rio novamente será tema de uma grande reportagem internacional, desta vez da prestigiada revista americana "The New Yorker". Em maio, o jornalista e escritor Jon Lee Anderson veio à cidade para tentar compreender como atuam as organizações criminosas do tráfico de drogas e como seu poder transformou a vida dos cariocas. A diferença da reportagem de Anderson para outros trabalhos internacionais que lidaram com o assunto é que ele subiu favelas, conversou com traficantes e pôde presenciar a ausência do Estado em várias situações.

Um dos mais renomados jornalistas americanos, autor de "Che Guevara - Uma biografia" (Objetiva), com vasta experiência em zonas de guerra, como Iraque e Afeganistão, Anderson esteve no último fim de semana na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Lá, evitando revelar nomes, ele adiantou para O GLOBO algumas das histórias que serão abordadas em seu texto e garantiu: "O Rio é uma calamidade nacional". De acordo com ele, sua reportagem, cujo potencial de repercussão para a imagem da cidade no exterior é grande, deve ser publicada até o fim de julho.




Por que fazer uma reportagem sobre os problemas do Rio?

JON LEE ANDERSON: Minha reportagem não será um texto de um americano dando respostas para os problemas brasileiros. Eu não tenho essa pretensão. O que acontece no Rio faz parte de uma história maior, que não é exclusiva do Brasil e que já aconteceu em outros lugares, em tempos diferentes. Se você observar a Chicago dos anos 1930, vai entender o que quero dizer: lá também havia corrupção e não havia Justiça. Vale a pena escrever sobre o Rio porque a cidade é um exemplo extremo do que acontece em outros lugares.

" O que acontece no Rio faz parte de uma história maior "

O senhor entrou nas favelas sozinho ou acompanhado?

ANDERSON: Acompanhado. Eu tive algum acesso a algumas favelas. Eu fui para o Alemão, por exemplo, e algumas outras. Mas prefiro não dar detalhes sobre isso antes de minha reportagem ser publicada.

E o senhor falou com traficantes?

ANDERSON: Sim.

O que eles disseram?

ANDERSON: Não existe um discurso único. O que eu achei mais interessante foi como eles se assumiram como criminosos, literalmente como criminosos. Não houve tentativas de fingir que têm outro papel. Mas eles tentaram se justificar de alguma forma, como se buscassem redenção, explicando que as pessoas dependem deles. Segundo suas descrições, é uma relação parecida com a estabelecida pelas máfias. Se as senhoras ficam sem gás, eles compram gás para elas, essas coisas. O interessante para mim é como isso é permitido, como a sociedade está acomodada com essa situação.

" O que eu achei mais interessante foi como eles se assumiram como criminosos "

Por que acomodada?

ANDERSON:Eu fui a favelas em que não aparecia polícia desde 2003. Há mil favelas no Rio. Eu acho que a situação do tráfico não é vista como uma calamidade nacional. E, no meu ponto de vista, é o que o Rio é: uma calamidade nacional. Há gangues fora de controle em muitos territórios. O que as diferencia das guerrilhas do passado é que antes havia ideal político. Há uma estranha acomodação e conveniência entre a criminalização da sociedade e o asfalto. Isso é uma perversão da normalidade. Depois de um tempo, você se adapta e se acostuma com essa deformação. Não é apenas no Rio. Eu já vi isso em outros lugares. E não é apenas um problema brasileiro, é um problema que ocorre na América Latina. Resolvi buscar essa história aqui porque acho o Rio um lugar maravilhoso e problemático.

Quando os traficantes tentaram se justificar, o senhor acreditou neles?

ANDERSON:O que me impressionou foi ver que eles realmente fazem algumas coisas pela população. Acontece que apenas algumas poucas pessoas são completamente más. A maior parte delas, mesmo criminosas, não o é. Até os criminosos precisam criar alguma compensação moral, por mais distorcida que seja. Isso está relacionado a um tipo de ordem que não é fornecida pelo Estado. Dar gás para a senhora que está precisando é uma boa forma de propaganda. Mas também é uma necessidade, porque eles precisam do apoio dessas pessoas, de um jeito ou de outro. Um guerrilheiro me disse certa vez: "Pode-se ganhar uma guerra de duas maneiras, a boa e má, e as duas funcionam." Só que também é possível usar as duas maneiras ao mesmo tempo. E, de fato, é o que acontece no Rio. Você pode intimidar toda uma população para que ela faça o que você ordenar. Para os traficantes, não importa tanto quem vai vencer. Isso é secundário. É mais uma questão de sobrevivência por um tempo. É sempre uma questão de sobrevivência. Se o Estado não lhes dá condições para deixar de ser criminosos, tudo o que podem fazer é continuar sendo criminosos e sobreviver. É uma escolha amoral de uma existência amoral.

" Os criminosos estão se tornando mais fortes,
perderam todo o respeito pelas leis e pela sociedade "


A culpa, então, é do Estado?

ANDERSON: Não, não estou pondo toda a culpa no Estado. Mas também não acredito que ele seja uma vítima. Há uma perversão patológica que permite que a criminalização da sociedade continue. Isso é perturbador. No Rio, o comportamento criminoso visa sobretudo a ganhar dinheiro. É inteiramente materialista. É uma humilhação imensa para a existência humana. Eles não lutam ou arriscam suas vidas para mudar a sociedade. Eles arriscam suas vidas para vestir um Emporio Armani. E me assusta ver que o resto da sociedade, que também gosta de vestir um Emporio Armani, está feliz em deixá-los fazer isso. É claro que a sociedade vai dizer que não está feliz, mas sua inércia diz o contrário. E é claro que há uma relação entre eles, de fornecedores e consumidores, e também das redes corruptas do Estado que não ocupam aquele vácuo. O Estado se mostra disforme e corrupto quando aceita fazer contato com eles. A polícia se torna assassina ou vira milícia, o que também é um tipo de máfia. E os juízes, o que fazem? Por que os assassinos de Tim Lopes estão nas ruas? Os jornalistas hoje têm medo de entrar nas favelas porque eles são torturados e mortos. OK, se é errado torturar e matar, por que eles são soltos depois de dois ou três anos? Não estamos falando de um assaltante de banco que atirou em alguém acidentalmente, estamos falando de uma pessoa que torturou a outra até a morte por horas. O Estado não está funcionando, e os criminosos sabem disso. Os criminosos estão se tornando mais fortes, perderam todo o respeito pelas leis e pela sociedade.

O senhor procurou alguém do governo?

ANDERSON:Sim, eu conheci algumas pessoas interessantes. Algumas me pareceram excepcionais e parecem ainda tentar descobrir como consertar o problema. Também falei com alguns policiais e com pessoas envolvidas na segurança do estado.

" O que acontece na América Latina parece aquela cidade distópica do Batman "

Existe um documentário brasileiro chamado "Notícias de uma guerra particular", dirigido por João Moreira Salles. O senhor viu este filme?

ANDERSON: Sim. Eu me encontrei com João logo que comecei a apurar a história. Ele me disse que se afastou do tema nos últimos anos. E disse que muitos dos jovens do filme já estão mortos. Vendo o filme, percebe-se que a situação do Rio já era emergencial há 12 anos. Só que, de 12 anos para cá, o número de mortos só cresceu. Eu fui ao enterro de um policial. Enquanto eu estava no Rio, cinco policiais foram mortos. Parece que atirar e matar policiais é um esporte. Isso deveria chocar as pessoas. Mas talvez as pessoas não se choquem porque elas também não enxergam os policiais como uma força de lei e ordem. É horrível pensar que a população pode enxergar os policiais como criminosos. O Estado não aplica a Justiça, então a polícia mata. E, em resposta, os criminosos matam de volta. O que acontece na América Latina parece aquela cidade distópica do Batman. Os criminosos são personagens que têm rostos, que se escondem e que entram em guerra contra a cidade. O Pinguim virou realidade. Não deveria ser assim, mas é, e as pessoas se acomodaram com essa situação.

" Não é porque eu vou escrever sobre ela, humanizar
essa personagem, que estou fazendo apologia ao crime "

Quando João Moreira Salles lançou seu filme, ele foi criticado por ter mantido contato com traficantes. O senhor acha que o mesmo pode acontecer com sua reportagem?

ANDERSON:Eu acho que sim. Na Colômbia, o presidente Uribe, que tem uma popularidade imensa, chama todos os guerrilheiros de terroristas. A população ficou apática e não quer saber o que acontece nas selvas, onde ficam esses guerrilheiros. Então, um grupo de jornalistas entrou nas selvas para se encontrar com os guerrilheiros e fazer um documentário. Aí o presidente passou a chamar esses jornalistas de terroristas também. Eu não sei exatamente o que aconteceu com João Moreira Salles aqui. Só li sobre o caso muitos anos depois e soube de várias versões diferentes. Mas me parece problemático quando o governo ataca verbal ou judicialmente jornalistas que cruzam a linha para informar à população o que acontece do outro lado. Espero que as pessoas não cometam esse erro comigo e me acusem de qualquer coisa só porque eu conversei com criminosos. Eu não criei esse problema. Foram as supostas autoridades que permitiram que isso ocorresse. As favelas às quais eu fui não veem autoridade há sete anos. E eu também entrei em favelas em que passei por pequenos postos policiais completamente nas mãos de grupos criminosos armados, vendendo cocaína abertamente, com armas na mão. Tudo em frente à polícia; também vi policiais lá. Eu conheci uma traficante muito simpática, que me contou que tinha sido estuprada por um grupo quando criança. Ela não estava justificando sua atividade. Ela é uma traficante. Não é porque eu vou escrever sobre ela, humanizar essa personagem, que isso significa que eu estou fazendo apologia ao crime. Não concordo. Não escrever sobre ela é não lidar com o problema. E escrever não é desculpar seu crime.

Quando o senhor conversou com os traficantes, em algum momento eles trataram da relação que é criada entre eles, que são fornecedores, e os usuários de drogas?


Anderson — Eles se justificam dizendo que só vendem porque há demanda. É um argumento antigo, mas não é desculpa. Você acaba deixando de lado o problema real. Você poderia dizer que, se não houvesse crianças, não haveria pedofilia. Passa pela psicologia do crime culpar a sociedade por seus atos. É dizer que a polícia é cruel, então tenho que matá-la; que os ricos nos exploram, usam drogas e são moralmente decadentes, então sou melhor do que eles, porque sou pobre e há virtude em ser pobre. Só que não há virtude em ser pobre, a pobreza não tem a ver com virtude. Da mesma forma que não há virtude em ser uma vítima.


Eu me lembro que, no Iraque de Saddam, todos culpavam o Saddam. Só que a população era cúmplice. No fim, ela se tornou parte de sua repressão porque, com sua violência, ele fez com que todos aceitassem suas regras. Se você não lutar para consertar um problema logo, todos acabam vivendo juntos e todos são culpados juntos. No fim, a diferença entre bons e maus é pequena. Fica difícil identificar quem é culpado ou inocente. Na essência, qualquer crime organizado funciona assim. Se você deixá-lo continuar, você cria um ambiente deformado.

O senhor acha possível fazer uma comparação do Rio com Bagdá?


Anderson — É difícil estar com criminosos porque você não sabe o que eles podem fazer. São imprevisíveis. Eles não têm um ideal político. Nesse sentido, é sempre mais perigoso estar perto de criminosos.

O senhor tem filhos?


Anderson — Sim, três adolescentes.

Se algum deles lhe dissesse que está pensando em tirar férias sozinho no Rio, o que o senhor diria?


Anderson — Eu diria não.

E ponto final?


Anderson — Não, não seria ponto final. Eu tentaria arrumar uma garantia de que eles poderiam viajar com segurança. Tentaria marcar com amigos que conhecem o Rio, essas coisas. E explicaria a eles o porquê. Eu viajei pela África com 13 anos de idade sozinho, sem meus pais saberem. Nada de ruim aconteceu comigo. E meus filhos sabem disso. Meu filho agora tem 16 e quer fazer o que eu fiz, mas eu digo a ele que o mundo mudou. Eu tento não fazer com que eles tenham medo, mas também não quero que se machuquem. Como qualquer pai, eu tento permitir que eles façam coisas, mas em segurança. Estou com dois de meus filhos aqui em Paraty e vou levá-los ao Rio nos próximos dias.

fotografia por André Coelho

July 1, 2009

'Não existem provas de casos de delação'

Filho de Wilson Simonal rebate as acusações de que seu pai teria sido um informante da ditadura militar



ENTREVISTA
Max de Castro

Nos tempos da ditadura, assumir uma posição política era uma exigência feita tanto por aqueles alinhados com o governo militar, quanto por militantes de esquerda. Na mesma linha, um debate que ocupa a opinião pública, hoje, também tem relação com aquela época: de um lado estão os que acusam o cantor Wilson Simonal de ter sido um informante da ditadura; do outro, ficam os que defendem o artista com igual paixão.
O sucesso de “Simonal — Ninguém sabe o duro que dei”, documentário de Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal em cartaz no Brasil, fez com que a dúvida que permanece por mais de 30 anos retornasse com toda a força, inclusive com a publicação, no jornal “Folha de S. Paulo”, de um depoimento que Simonal teria dado à polícia, assumindo ser dedo-duro.
Em entrevista ao GLOBO, Max de Castro, filho do cantor, porém, rebate qualquer alegação sobre o fato.
“Não existe prova de delação”, diz ele.

André Miranda

O GLOBO: “Simonal — Ninguém sabe o duro que dei” trouxe à tona a discussão sobre os muitos anos em que Wilson Simonal foi considerado um informante da ditadura. Você e sua família acreditam que ele tenha sido informante?
MAX DE CASTRO:
Não acredito por uma simples razão. Em 37 anos, desde o episódio em que esse assunto apareceu, não existem provas de casos de delação de qualquer pessoa do meio artístico e de desbaratamento de qualquer movimento subversivo ou não, em que se possa dizer: “Aí teve o dedo do Simonal”.

Qual a sensação de vocês, familiares, ao assistirem ao documentário?
CASTRO:
Fico sempre impressionado sobre como todas aquelas coisas podem ter acontecido na vida de uma pessoa, impressionado com o drama humano. A infância miserável, o talento, o sucesso, as Mercedes, as mulheres, o racismo, o processo e a prisão, a família, o ostracismo, o alcoolismo.
Parece tragédia grega.

Em um depoimento ao Dops, no dia em que o contador tomou a surra dos policiais, o Simonal teria declarado que cooperava com a ditadura com "informações que levaram esta seção a desbaratar por diversas vezes movimentos subterrâneos". O que vocês acham desse depoimento?
CASTRO:
É fundamental entender o contexto dessa declaração.
O depoimento do Simonal foi dado no mesmo dia e no mesmo local onde houve a agressão a seu ex-funcionário e justamente para os mesmos policias que foram os responsáveis pela operação — o chefe de buscas ostensivas do Dops, Mário Borges, e o policial da casa Hugo Correia de Matos.

Vocês acham, então, que o depoimento do Simonal pode ter sido forjado?
CASTRO:
Para mim, é claro que esse documento “legal”, feito em forma de denúncia, foi produzido para legitimar a atitude ilegal que os policiais iriam cometer.

E vocês conheciam esse depoimento?
CASTRO:
Há bastante tempo.
Eu já vi esses documentos até em tese de mestrado de faculdade.

Como o Simonal se sentia carregando o peso nas costas de ser considerado por muitos como um informante? E para a família? Vocês também sofreram com o preconceito que o Simonal carregou?
CASTRO:
Não dá para explicar com palavras. No filme, o sofrimento aparenta ser grande. Posso garantir que fora da tela o sofrimento foi cem vezes maior.

Por que você acha que essa história perdura até hoje? Quem foi o responsável em colar em seu pai a alcunha de dedo-duro?
CASTRO:
A guerra política é suja. Informações e contrainformações são usadas para confundir. Se o Simonal não fosse “marrento” e “exibido”, não teria colado. É como apelido que só pega em quem reage.
Se você ler o processo dele, em 655 páginas não há um único fato concreto que mostre que ele tenha colaborado com o Dops como informante. Na verdade, o máximo que se pode afirmar é que foi o Dops quem colaborou com ele. Esse foi o seu grande erro: usar o seu prestígio e carisma de artista para resolver um problema pessoal de uma maneira tão irresponsável. O Simonal era umas das pessoas mais famosas do Brasil naquela época. Os policiais não fizeram aquilo por razões políticas, fizeram para bajular o astro, o ídolo.

A tese defendida pelo documentário é de que Simonal não era informante, mas que ele ainda assim cometeu o erro de encomendar a surra no contador. Ele falava sobre isso com a família?
CASTRO:
Não concordo que o filme defenda essa tese. O tema é abordado mas é que, como não há provas de que ele tenha sido mesmo um informante, seria leviano fazer essa afirmação. Todo mundo é inocente até que se prove o contrário. Não se trata de inocentar Simonal. É que ainda faltam dados para condenálo. Embora tivesse seus motivos, ele pôs tudo a perder quando decidiu resolver o assunto com violência e covardia.
Foi processado, condenado, preso e perdeu tudo o que tinha conquistado. Só não é justo, por tabela, ele ter de pagar por um outro crime que ele não cometeu.

Qual a imagem do Wilson Simonal que você guarda na lembrança?
CASTRO:
A de um pai afetuoso, querido e amoroso.

O Globo, 27 de junho de 2009

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