January 10, 2010

Games incomodam e viram arte



Manter os jogos eletrônicos na periferia das artes "sérias" acaba gerando um tratamento irracional, que resvala em decisões judiciais equivocadas.



RONALDO LEMOS

Colunista da Folha


PEDRO MIZUKAMI

Especial para a Folha






Raramente os cadernos de cultura falam sobre games. Em geral, as críticas são técnicas e não observam o valor narrativo dos jogos como uma mídia privilegiada para contar histórias e levantar questões. E, sobretudo, como um referencial cultural cada vez mais compartilhado.

Dados sobre hábitos culturais em algumas capitais, divulgados recentemente pelo Ministério da Cultura, mostram que, em todas, a prática de "jogar games" é mais comum do que "ir ao cinema" (em São Paulo, por exemplo, os números são 13% e 8,7%, respectivamente). É um bom momento para pensar sobre esse fenômeno. A narrativa dos jogos vem atingindo momentos notáveis. Um exemplo é o recente "Call of Duty: Modern Warfare 2 (MW 2)". As análises mais corriqueiras vão dizer que é um excelente jogo de tiro. Dificilmente vão notar que ele trata da questão da moralidade da guerra, o mesmo tema de Barack Obama em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz.



Em um trecho do game -que pode ser evitado-, o personagem controlado pelo jogador é um agente da CIA infiltrado em uma célula terrorista ultranacionalista na Rússia. Forçado a participar do massacre de centenas de civis em um aeroporto, ele protagoniza a atrocidade. O que fazer, disparar? E em que outras missões disparar também se justifica?Estão presentes, aqui, os embates morais clássicos, encarados a partir da lógica do terrorismo e da guerra contemporânea. "Modern Warfare 2" coloca o jogador em situações que lembram a ele sua condição de ser moral.



A cena é perturbadora, como um filme de Samuel Fuller. A diferença é que a imersão do jogo torna o seu impacto bastante diferente. Qualitativamente diferente, e não "maior" ou "menor". É justamente por conta de preconcepções quanto aos efeitos da "interatividade" que os jogos costumam ser tratados diferentemente dos filmes ou dos livros. Isso tanto dificulta sua emancipação enquanto arte quanto reforça sua conexão com o mercado. É um exemplo da mesma ansiedade regulatória que acompanhou o nascimento da indústria cinematográfica norte-americana. Ansiedade que resulta até em pânicos morais e censura. Que, ironicamente, acabam ajudando a divulgar os jogos.



Para encarar os jogos com um olhar diferente, vale falar também de diversidade sexual. No ano passado, o jogo "Mass Effect" causou polêmica em razão de uma relação entre uma humana e uma personagem alienígena. Em "Fable 2", o protagonista, um(a) garoto(a) órfão(ã), pode -se quiser- estabelecer relações afetivas com ambos os sexos. Ao saber que os games de hoje colocam os jogadores como protagonistas de massacres terroristas ou de relações homossexuais, muitos vão se sentir saudosos da época de "River Raid" e "Pac-Man", em que as coisas eram mais simples. É exatamente esse o sinal de que os jogos viram arte. Incomodam do mesmo jeito que incomodava o cinema de Hollywood dos anos 70. Mantê-los na periferia (ou como rebeldes sem causa) das artes "sérias" acaba gerando um tratamento irracional, que resvala em decisões judiciais e projetos de lei que enxergam os games como se estivessem fora da garantia constitucional de liberdade de expressão.



Neste ano, vamos acompanhar o destino do projeto de lei do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que estabelece a proibição de jogos ofensivos "aos costumes e à tradição dos povos". Acompanharemos também lançamentos que apostam no experimentalismo, como "Heavy Rain". Entre "Heavy Rain" e Valdir Raupp, há um universo complexo, ao qual um pouco mais de atenção não vai fazer mal nenhum.

Folha de São Paulo, 7 de janeiro de 2009

January 7, 2010

Blogs fazem "permuta" para driblar censura

Blogueiros decidem trocar informações para evitar a proibição imposta pela Justiça contra divulgação de dados

Ricardo Brandt

Dois blogueiros censurados pela Justiça de publicar informações sobre casos de escândalos decidiram trocar informações, publicando um a notícia do outro. Dessa forma, conseguiram furar a mordaça imposta por tribunais estaduais sem que fossem executados judicialmente. Os autores da ideia são o jornalista Fábio Pannunzio e a economista Adriana Vandoni.

Desde que foi criada no dia 14 de dezembro, a "permuta de censura" - como foi batizada - já ganhou duas adesões. A última da jornalista Alcinéia Cavalcanti, proibida pela Justiça do Amapá de publicar notícias sobre a família Sarney.

Segundo Pannunzio, jornalista da Rede Bandeirantes que mantém o Blog do Pannunzio, a proposta tem o "objetivo de preservar o interesse público e a liberdade de imprensa". "Ao mesmo tempo em que respeitamos a decisão dos juízes que nos censuraram, cujas decisões alcançam apenas o que é veiculado em cada um dos blogs, e não de terceiros", explica.

O Blog do Pannunzio está proibido pela Segunda Vara Cível de Curitiba de veicular notícias sobre Deise Zuqui, uma brasileira investigada pela Polícia Federal por suposto envolvimento com uma quadrilha de traficantes de trabalhadores.

Adriana Vandoni, que mantém o blog Prosa e Política, está proibida pela Justiça de Mato Grosso de publicar informações a respeito do presidente da Assembleia Legislativa local, José Riva, que responde a mais de 100 ações por improbidade administrativa.

No caso do Amapá, os blogueiros lembraram que "ao processar Alcinéa mais de vinte vezes, Sarney, que da tribuna do Senado afirmou que jamais processara um jornalista, transformou-se em pioneiro desse novo tipo de censura, agora decretada por juízes togados".

Também integra a rede de "permutada de censura" o blog Página do E, mantido pelo jornalista Enock Cavalcanti, também alvo de ação judicial no Mato Grosso.

Estadão, 3 de janeiro de 2009



OS MELHORES DISCOS DE 2009

“PIMENTEIRA”: Em seu segundo disco, o sambista Pedro Miranda justifica a reverência de Caetano à sua “musicalidade, cultura entranhada, naturalidade e frescor”. Cria da Lapa, Miranda, que integra o grupo Semente e o Cordão do Boitatá, e isso não é novidade alguma, é uma das melhores traduções do samba atual.


“DOIS”: Adriana Calcanhotto retomou seu heterônimo Partimpim e novamente acertou, arrebatando corações e mentes de crianças, de todas as idades, incluindo aquelas já pais e avós. No repertório cabem tanto Caetano (com “Alexandre”) quanto Dylan em versão de Zé Ramalho (“O homem deu nome a todos animais”), passando por João Gilberto (“Bim bom”), Roberto & Erasmo (“Gatinha manhosa”), Villa-Lobos & Ferreira Gullar (“O trenzinho do caipira”) e uma canção de Adriana com seu produtor e baixista, Dé Palmeira (“Baile partimcundum”). Musicalmente, passa, sem fronteiras estéticas, por rock, frevo, samba-reggae...

“MARIA GADÚ”: Em seu disco homônimo de estreia, lançado em julho, então aos 22 anos, Maria Gadú impressionou pela voz forte e bem colocada, indo de “Baba baby” e “Ne me quitte pas”, e também como compositora, caminhando com segurança do samba “Altar particular” à balada pop, em tom de mantra, “Shimbalaiê”.

“CERTA MANHÃ ACORDEI DE SONHOS INTRANQUILOS”: “Há sempre um lado que pesa/ E outro lado que flutua” são os versos que abrem o quarto CD de Otto. É esse o assunto central do pernambucano em seu disco: o peso e a leveza da vida, do amor, da despedida. Com contundência e lirismo, ele une batuques do candomblé, guitarras de rock da década de 1970, programações, naipes de cordas e metais. As participações de Céu, Lirinha e da mexicana Julieta Venegas dão ainda mais força ao repertório, autoral até mesmo quando relê os clássicos “Lágrimas negras” e “Naquela mesa”.

“ODILÊ, ODILÁ”: Quando desembarcou no Brasil há quase dez anos, Nicolas Krassik era apenas um violinista apaixonado pelo samba e pelo choro. E as melodias de João Bosco foram uma de suas primeiras paixões. Hoje podemos dizer que ele é um de nossos melhores músicos, agregado à horda de instrumentistas de todos os lugares que desembarcam o tempo inteiro na Lapa. Seu passeio pela obra do autor de “Coisa feita”, “Linha de passe” e “Corsário”, com arranjos do pianista e acordeonista Marcelo Caldi e produção de Luís Felipe de Lima, é delicioso e pertinente.

“IÊ IÊ IÊ”: Radiofônico até o osso, mas sem deixar de lado a inteligência que caracteriza seu trabalho, Arnaldo Antunes fez talvez o melhor disco de sua carreira. Dialogou com a tradição mais popular de nossa música, visitou clichês de forma original e mostrou que a contribuição tribalista foi maior do que poderia parecer à primeira vista. O artista usou como base o trio que o vem acompanhando nos últimos anos (o baixista Betão Aguiar, o guitarrista Chico Salem e o pianista Marcelo Jeneci) e convidou músicos jovens como Curumin e Fernando Catatau (produtor do CD), e seu antigo parceiro Edgar Scandurra. A alquimia perfeita se completa com versos maduros, apesar de adolescentes — em sua pureza, malícia e vigor.

“UHUUU!”: Quatro anos depois do elogiado “E o método Túfo de experiências”, a banda cearense Cidadão Instigado reafirmou seu caminho singular com “Uhuuu!”. Fernando Catatau (voz, guitarra e teclado), Regis Damasceno (guitarra e violão), Rian Batista (baixo) e Clayton Martin (bateria acústica e eletrônica) aproximam melancolia à la Roberto Carlos, surf music, disco, psicodelia, guitarrada, paranoia e classic rock com resultados surpreendentes — tão estranhos quanto sedutores.

“SÃO MATEUS NÃO É UM LUGAR ASSIM TÃO LONGE”: O título do CD de estreia do cantor, compositor e cavaquinista paulista Rodrigo Campos é grande, assim como sua arte. O disco tem a estrutura de um romance, cada canção é um capítulo, com personagens que estão em mais de uma faixa. Paralelo literário sem perda da musicalidade, passando por sambas, toadas, baladas, em produção (Beto Villares) que mistura instrumental acústico e eletrônico. Um clássico instantâneo.

“CHIAROSCURO”: Pitty não tem pressa: seu terceiro disco de carreira (além de um DVD ao vivo) foi lançado em 2009, depois de o Brasil ouvir e consagrar com calma os dois primeiros, “Admirável chip novo” (2003) e “Anacrônico” (2005). À frente de sua banda — Joe no baixo, Martin na guitarra e Duda na bateria —, a cantora baiana mergulhou no estúdio e saiu com um disco que dá um passo à frente em relação aos anteriores, mais elaborado, experimental. Com isso tudo, ela não deixa de ser Pitty, com humor (como em “Me adora”, talvez a música do ano), fúria e o amor de sempre pelo rock.
“BENITO DI PAULA AO VIVO”: Ícone de uma geração de sambistas populares do discriminado sambão-joia dos anos 1970, juntamente com Luiz Ayrão e Agepê, Benito di Paula ganhou um merecido tratamento de luxo da EMI em sua volta discográfica, com produção de Jorge Cardoso, após 13 anos sem gravar. O cantor, que chegou a bater de frente com Roberto Carlos em número de discos vendidos, com sucessos como “Retalhos de cetim”, ”Mulher brasileira”, “Charlie Brown” e “Do jeito que a vida quer”, teve um justo acerto de contas com sua própria história musical.

Os melhores discos de 2009 foram escolhidos por Antonio Carlos Miguel, Bernardo Araujo, João Pimentel, Leonardo Lichote e Tom Leão. 

O Globo, 31 de dezembro de 2009

January 6, 2010

Vigor presente tanto no jazz cubano quanto no rock de novos e veteranos

Num ano sem grandes revelações, a experiência foi fator fundamental




“AKOKAN”: Pianista e compositor cubano, inicialmente, Roberto Fonseca impressionou as plateias brasileiras atuando nos grupos de dois veteranos cantores de seu país, Ibrahim Ferrer e Omara Portuondo. Seu novo disco solo, “Akokan”, confirma o vigor e a inventividade desse músico, seja em recriações para clássicos de Cuba (como “Drume negrita”) ou em composições originais (como “Lento y despacio” e “Pequeños viajes”).

“WORLD PAINTED BLOOD”: Depois da volta à boa forma do Metallica, em 2008, com “Death magnetic”, no ano que chega hoje ao fim outro monstro do thrash metal, o Slayer, lançou um CD de acordo com sua reputação. Com “World painted blood”, o quarteto californiano mostrou que sua fúria segue intacta, ao contrário da competência técnica dos músicos, cada vez maior. Destaque absoluto para o inacreditável baterista Dave Lombardo.

“LIVE IN LONDON”: Em julho de 2008, o veterano cantor e compositor canadense Leonard Cohen, então com 74 anos, emocionou o público que lotou a O2 Arena, em Londres, num recital que reuniu clássicos como “Suzanne”, “Bird on the wire” e “Hallelujah”. Baladas que servem de veículo para a forte poesia desse mestre zen do pop.

“TONIGHT”: Com o seu terceiro disco, a banda escocesa Franz Ferdinand deu uma leve guinada no som, saindo do dance rock fácil para um tipo de som mais psicodélico e denso. Foram ousados neste sentido, nos dando músicas que demoram mais a colar do que as dos trabalhos anteriores, mas ricas em texturas. Como “Lucid dreams”, a faixa mais ambiciosa que já gravaram. Ponto para eles.

“LIVE FROM THE MADISON SQUARE GARDEN”: Dois sobreviventes do melhor rock produzido nos anos 1960 (e 70, 80...), Eric Clapton e Stevie Winwood juntaram forças nesse vibrante CD e DVD ao vivo. Entre os trunfos do repertório no show em Nova York estão cinco das seis faixas que eles lançaram no único disco do efêmero supergrupo Blind Faith, que criaram em 1969, e ainda a homenagem a Jimi Hendrix, na versão de “Voodoo Chile”.

“REALITY KILLED THE VIDEO STAR”: Os quase três anos de silêncio e depressão, após o fracasso comercial e artístico de “Rudebox”, acabaram fazendo bem a Robbie Williams. O cantor inglês retomou seu pop abrangente em “Reality killed the video star”, com referências que vão de Beatles a Elton John, em canções como “You know me”, “Last days of disco” e “Bodies”.


“PHRAZES FOR THE YOUNG”: A estreia solo de Julian Casablancas, vocalista dos Strokes, cumpriu as expectativas. Com sonoridade que mergulha no pop de sintetizadores dos anos 1980 com uma postura punk, o artista se aproxima do som de sua banda, mas com inovação em vez de pastiche. Retrô e contemporâneo, o primeiro single “11th dimension” dá mostras da força do CD.

“LIVE AT READING”: Quase 20 anos depois, chega o DVD do registro de uma acachapante apresentação do Nirvana no festival inglês de Reading, de 1991, quando eles mal haviam aparecido nas paradas de sucesso com o disco “Nevermind”. E o que se vê é o Nirvana no auge do sucesso, ainda surpresos por tocarem para grandes multidões. Histórico.

“IT ’S BLITZ ”: Os Yeah Yeah Yeahs, liderados pela exótica cantora Karen O, surpreenderam com o seu terceiro trabalho, trocando a maioria das guitarras por versões simuladas do instrumento e puxando o som para uma espécie de dark dance, pesado, mas com mais detalhes eletrônicos e climas.

“THE RESISTANCE”: É preciso um bocado de coragem para, em pleno século XXI, lançar um disco de rock progressivo parecido com aqueles que se faziam em meados dos anos 1970 e não soar como piada. Mas o inglês Muse foi lá e fez, um disco grandioso e imponente, sem medo de soar ridículo, carregado de temas impressionantes, corinhos vocais à la Queen, solos de piano, fanfarras e tudo a que se tem direito numa obra desse tipo (até a capa, meio sci-fi). Matt Bellamy (voz, guitarra, piano e letras) e seus asseclas meteram a cara e não se deram mal. Ligue o seu aparelho quadrafônico e viaje no som.

O Globo, 31 de dezembro de 2009

Dos 22 sobrou só ele: o algoz Ghiggia

UGO GIORGETTI

Na semana passada houve uma cerimônia estranha no Maracanã; Contrariando a crença atual de que adversários são inimigos a serem trucidades, e que só importa vencer, Ghiggia, o algoz do Brasil na pior derrota de sua história, foi homenageado e teve seus pés moldados na calçada da fama do nosso maior estádio. Foi uma ocasião em que pudemos demonstrar o quanto ainda não perdemos totalmente os vínculos com a civilização que, aliás, nos permitiu, na época, perder em nossa própria casa sem que os adversários se sentissem ameaçados ou desrespeitados.

A atitude do povo brasileiro na derrota para o Uruguai em 1950 fez mais para o prestígio internacional do Brasil que algumas vitórias que conseguiríamos depois. De qualquer forma foi tocante ver o velho Ghiggia emocionado ao constatar que o País de quem tirou a Copa lhe rendia homenagem. Aos 83 anos o velho ponta direita compreendeu perfeitamente o alcance do que se estava fazendo. Ghiggia é o único sobrevivente dos 22 jogadores que estavam em campo naquela tarde de 1950, talvez por isso a homenagem tenha sido tão significativa. E o destino, tecendo uma de suas caprochosas teias, nos deixou para receber as homenagens como único sobrevivento justamente o homem que decretou nossa derrota.

Sobrou a ele nos dizer, com um simbolismo irônico, que o herói daquela partida ainda está vivo, que nos fins de tarde de tempo ameno se senta em algum banco em Montevidéu olhando o Rio da Prata e talvez lembrando de seu gol decisivo.

Dos 22 sobrou um. O homem que decidiu o jogo. Fico pensando o que sei desse jogador do qual ouço falar desde 1950. Do qual conheço apenas um lance de que participou: o gol. De resto, nada. Terá sido um grande ponta? Driblava? Chutava forte? O que fez naquela Copa, além do segundo gol contra o Brasil? Não sei sequer em que time Ghiggia jogava no Uruguai. Dele ficou apenas um lance, milagrosamente preservado, daquela partida. Um lance rápido repetido um milhão de vezes desde aquele dia. Vê-se um jogador,.que para os padrões de hoje me parece um pouco gordinho, entrar com a bola dominada e desferir um chute com convicção, com toda a força que tinha, a ponto de levantar um pouco de poeira. Depois ve-se a bola no fundo das redes e Barbosa desconsolado se erguendo lentamente. É isso. Nada mais resta de Ghiggia.

Aliás, cada vez mais se sabe menos sobre aquela partida, porque quem realmente saberia o que verdadeiramente se passou dentro de campo já não existe: morreram todos. Mas é possível que o único que sobrou tenha os segredos do que aconteceu naquela tarde no Maracanã e esse talvez seja o lado bom da falta de documentação. Poucos filmaram aquela Copa, a primeira depois da Segunda Guerra, quando ainda havia países que recompunham as suas ruinas, e a falta de registro filmado aumenta a importância do testemunho de quem estava lá. Penso que só os jogadores sabem como foi uma partida. O resto de nós, torcedores, imprensa, etc., vemos o que é possível ver de fora, de longe. Vemos um outro jogo e, às vezes, nem isso. Em cada partida há um lado oculto que só quem joga vê.

Frequentemente é a parte mais importante. Por isso o que ocorreu naquela distante partida da decisão do Mundial de 50 quando o Brasil perdeu a Copa só Ghiggia sabe. Ele é o último dos que estavam lá, onde as coisas aconteceram.

Estadão. 3 de dezembro de 2009

January 5, 2010

O dia em que irritei Fernanda Young

A única décima colocação de qualquer concurso do mundo que rendeu um e-mail e um tweet

Artur Xexéo




ilustração de CRUZ (clique para ve-la maior)

Esta coluna promove a eleição da Mala do Ano há mais ou menos 15 anos. Digo “mais ou menos” porque admito que não me lembro muito bem de quando tudo começou. Na época, ainda frequentava o outro botequim e não tenho acesso a seus arquivos. Lembro-me, porém, de que a ideia partiu de um leitor, e, desde então, é o leitor quem manda no concurso. Nesse período, foram eleitas mais ou menos 15 malas.

Como sempre foi hábito mencionar as dez primeiras colocadas, não seria um grande erro afirmar que devo ter citado mais ou menos 150 malas nestes 15 anos. Porém, como algumas malas apareceram no Top 10 mais de uma vez (a ministra Dilma, por exemplo, vencedora de 2009, já estava entre os dez mais de 2008), talvez eu tenha citado cem personalidades diferentes desde a primeira eleição.

Pois bem, dessas cem malas, nenhuma escreveu ao colunista para reclamar de sua inclusão entre as favoritas do leitor.

E foi assim até quarta-feira passada, quando recebi o seguinte e-mail: “Caro Xexéu: Que bom saber que você finalmente entendeu o duplo-sentido incluído no título do meu programa.

Quanto a ser uma das ‘malas’ que mais chatearam você este ano, eu entendo, e me desculpo.

O que você fez em 2009, afinal? Escreveu um romance que já teve sua primeira edição quase esgotada? Escreveu um filme que foi campeão de bilheteria? Escreveu uma peça que foi montada em várias cidades do país? Teve algum sucesso nos seus planos de ser entrevistador de TV? Conseguiu ficar bonito em alguma foto? É, chateia mesmo.

Fernanda Young” Fernanda Young ficou em décimo lugar no concurso deste ano. Fico só imaginando qual seria sua reação se tivesse sido a vencedora.

Uma tentativa de assassinato? Há duas ou três coisas que gostaria de comentar sobre o e-mail. Para começar, não entendi direito — o que é muito natural, afinal o texto de Fernanda Young costuma ser altamente sofisticado e não é para qualquer um entender — qual seria o duplo sentido do título de seu programa de TV. Que duplo sentido pode ter algo chamado “Irritando Fernanda Young”? Acrescentaria que não há motivo algum para se pôr um hífen em “duplo sentido”. Eu sei que, com o novo acordo ortográfico, todo mundo está meio perdido com o emprego do hífen. Mas Fernanda Young é uma escritora com romances “quase esgotados”, escreve peças que são montadas “em várias cidades”, escreve filmes que são campeões de bilheteria, fica bonita nas fotos. Enfim, Fernanda Young é uma mulher de sucesso. Não pode ficar soltando hífens por aí a esmo.

Percebi também que Fernanda Young não entendeu o espírito da coisa. Ela não é uma das malas que mais me chatearam este ano.

Não acompanhei seu desempenho de sucesso em 2009. Não li seu romance quase esgotado, não comprei sua “Playboy” (parece que esta não esgotou, não; é mais fácil de comprar do que o romance) e, embora tenha estado em várias cidades do país em 2009, nunca calhou de estar no mesmo município em que sua peça estivesse sendo montada. O pouco que vi de Fernanda Young em 2009 foi no programa que ela apresenta nas madrugadas de domingo para segunda-feira no GNT. Ele não me chateia, mas me diverte. É verdade que me diverte mais quando Fernanda Young fala menos que o entrevistado (quando fala mais baixo, acho melhor também). Enfim, não tenho razão alguma para me chatear com Fernanda Young. Ela apareceu entre os dez mais da Mala do Ano pelo simples fato de ter sido votada pelos leitores desta coluna. Só isso. Será que há um duplo sentido (sem hífen, por favor) na eleição que eu não tenha captado? Por fim, gostaria de saber o que faz Fernanda Young imaginar que suas vitórias pessoais são um exemplo para a Humanidade. Ela tem razão: não escrevi um romance, não escrevi um filme, não escrevi uma peça, não tive planos de ser entrevistador de TV e não fiquei bonito em foto alguma. Aliás, fico tão feio em fotos — elas são justas com meus aspectos estéticos, devo admitir — que prefiro não posar para elas. E daí? Quem disse para Fernanda Young que suas realizações são o desejo dos outros. Os meus, posso garantir, não têm nada a ver com isso. Por exemplo, já estou mais do que realizado por uma pequena vitória conquistada em 2009: irritei Fernanda Young.

E para terminar, mas para terminar mesmo, vou contar o que mais me impressionou no email dessa mulher de sucesso: ela o enviou às 8h04min da manhã de quarta-feira, o dia em que seu nome apareceu no décimo lugar da Mala do Ano. E isso depois de já ter mandado uma mensagem, em versão reduzida, a todos os seguidores de seu Twitter. Vem cá, às 8h04min da manhã, em São Paulo, ela já tinha lido minha coluna, já tinha assimilado a questão, já tinha planejado uma resposta e já a tinha escrito? Isso é que é leitor fiel. Espero em 2010 contar com leitores tão dedicados quanto Fernanda Young.

O colunista deseja a todos os outros leitores um feliz 2010.

O Globo, 30 de dezembro de 2009


January 3, 2010

OS MELHORES LIVROS DE 2009




EUCLIDES DA CUNHA: O centenário da morte do escritor não foi tão badalado quanto o de Machado de Assis, ano passado, mas talvez tenha motivado lançamentos mais importantes. A “Poesia reunida” (Unesp), organizada por Leopoldo Bernucci e Francisco Foot Hardman, aumentou em muito o número de poemas editados do autor, corrigiu erros de edições anteriores e contribuiu para abrir todo um novo campo de estudos euclidianos. Igualmente importante é a biografia “Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos” (Ateliê Editorial), do pesquisador americano Frederic Armory, que morreu em fevereiro, antes de ver seu trabalho publicado. Baseado numa pesquisa exaustiva, e sem o partidarismo de estudiosos anteriores, Armory produziu uma obra de referência para a compreensão da vida e também dos livros de Euclides. A nova edição revista e ampliada das “Obras completas” (Nova Aguilar) tem importância óbvia, e, entre os muitos estudos críticos, “Euclidiana” (Companhia das Letras), de Walnice Nogueira Galvão, se destaca.







CLARICE, de Benjamin Moser (Cosac Naify): Apaixonado pela obra de Clarice Lispector, o americano Benjamin Moser trabalhou por cinco anos nesta biografia, que conseguiu, por um lado, reavivar o interesse pela autora no exterior (principamente nos Estados Unidos, onde o livro foi bem acolhido por crítica e público) e, por outro, apresentar ao leitor brasileiro um olhar particular sobre ela. Refazendo o percurso de Clarice de sua aldeia natal, na Ucrânia, até o Rio, Moser investiga as raízes judaicas da escritora e coloca sua obra no contexto social e político do Brasil da época. Sem grandes revelações sobre a autora, a biografia se constrói em torno dos mistérios de sua vida e de sua escrita.

O FILHO DA MÃE, de Bernardo Carvalho (Companhia das Letras): Como em outros livros seus, neste romance Bernardo Car valho maneja com maestria as convenções da escrita realista, para de modo traiçoeiro por em questão as convicções do leitor a respeito da psicologia humana, das identidades e da própria literatura. Tendo como pano de fundo a guerra entre Rússia e Tchetchênia, o livro flerta com o melodrama, mas recusa o sentimentalismo para construir um cenário pautado pelo ódio étnico, pelo militarismo e pela homofobia.

CAIM, de José Saramago (Companhia das Letras): Vinte anos depois de “O evangelho segundo Jesus Cristo”, o escritor português volta a se inspirar na Bíblia, desta vez tomando como mote a história do irmão assassino de Abel para criticar os dogmas e as contradições da religião. Com um humor corrosivo, Saramago sugere que o crime expõe a crueldade e o capricho de deus (sempre em letras minúsculas para o autor ateu), que teria desprezado os sacrifícios de Caim em prol daqueles oferecidos por Abel.

MEU AMOR, de Beatriz Bracher (Editora 34): Em seu primeiro livro de contos, Beatriz — autora dos romances “Azul e dura” (2002), “Não falei” (2004) e “Antonio” (2007), este último finalista dos prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura e Portugal Telecom — amarra delicadamente diversas narrativas em torno das múltiplas expressões do amor. São encontros, desencontros, alegrias, expectativas, perdas, rejeições, que revelam ao leitor o que o amor tem de mais concreto: a multiplicidade de vozes.

LEITE DERRAMADO, de Chico Buarque (Companhia das Letras): O quarto romance publicado por Chico Buarque é protagonizado por Eulálio Montenegro d’Assumpção, patriarca de uma família tradicional e decadente.
No leito de morte, ele dita suas memórias para uma figura feminina na qual se confundem uma enfermeira, sua filha e sua ex-mulher. Mais que a vida de um personagem, o que “Leite derramado” oferece é um painel ao mesmo tempo ambicioso e conciso de dois séculos de História brasileira, borrado pelas deformações da memória do narrador.

CINE-PRIVÊ, de Antonio Carlos Viana (Companhia das Letras): A epígrafe bíblica escolhida por Viana para abrir o livro — “Toda a cabeça está enferma, e todo o coração abatido” — dá o tom do que está por vir: vinte contos sobre personagens desamparados e desesperançosos, escritos numa linguagem seca, que não abre espaços para a redenção. Autor de “Aberto está o inferno” (2004) e “O meio do mundo e outros contos” (1999), o contista sergipano confirma nesta nova obra o domínio da narrativa e o apreço pela concisão.

O CONTROLE DO IMAGINÁRIO E A AFIRMAÇÃO DO ROMANCE, de Luiz Costa Lima (Companhia das Letras): A percepção de que a literatura brasileira era submetida a exigências recorrentes de exotismo e engajamento levou o crítico Luiz Costa Lima a desenvolver nos anos 1980 a noção de controle do imaginário, depois estendida à idade moderna. Com esse estudo, ele refina o conceito e mostra como o romance foi objeto de tentativas de controle desde seu nascimento, devido a sua vinculação com o prosaico e ao abandono dos tons e temas elevados da épica.

A MINHA ALMA É IRMÃ DE DEUS, de Raimundo Carrero (Record): Com este romance , Carre ro completa sua tetralogia “Quarteto Áspero”, formada também por “Maçã agreste”, “Somos pedras que se consomem” e “O amor não tem bons sentimentos”. Em “A minha alma é irmã de Deus”, Camila, uma jovem solitária do Recife, conhece o pastor e músico Leonardo, da seita Os soldados da Pátria por Cristo, e segue com ele numa viagem pelo interior do Nordeste. Mas, ao ser abandonada pelo mentor, ela vê suas certezas desmoronarem.

A LITERATURA EM PERIGO, de Tzvetan Todorov (Difel): Um dos principais nomes da crítica literária estruturalista, Tzvetan Todorov causou controvérsia ao dizer que críticos, professores e até escritores têm contribuído para tornar a literatura irrelevante na sociedade contemporânea.

Em parte por culpa do próprio estruturalismo, diz, a crítica hoje se ocupa mais de seus conceitos e divisões do que da relação dos livros com o mundo. Entre o ensaio e o libelo, Todorov faz o mea culpa e defende uma reaproximação entre a literatura e a vida.

Os melhores de 2009 na literatura foram escolhidos pela equipe do Prosa & Verso (Guilherme Freitas, Mànya Millen, Miguel Conde e o crítico José Castello)

O Globo, 28 de dezembro de 2009