January 16, 2016

Bowie é 10


Apesar do evidente paradoxo, nenhum artista capturou tão bem a fluidez do tempo, das pessoas, dos seres

Na noite de 18 de abril do ano passado, quando Lou Reed entrou para o Rock and Roll Hall of Fame, sua viúva, Laurie Anderson, contou que ele acreditava que uma pessoa morria, por assim dizer, três vezes. Primeiro, seu coração parava de bater. Depois, ela era enterrada ou cremada. Por fim, seu nome deixava de ser pronunciado. Ato contínuo, Laurie puxou um coro gutural: “Lou! Lou! Lou!” Claro, Reed morreu apenas duas vezes, em outubro de 2013. Antes, foi ídolo e protegido de David Bowie.

Na manhã de 11 de janeiro, a da última segunda-feira, na qual foi anunciada a morte de Bowie, ocorrida na véspera, em Nova York, cruzei em Laranjeiras com uma garota carregando sacolas de supermercado e vestindo uma camiseta com a face de Aladdin Sane, persona do álbum de 1973. Aquela homenagem imediata proporcionou-me o único meio sorriso daquela manhã. Sucessor de Ziggy Stardust, seu alter ego mais famoso, Aladdin Sane era um trocadilho com “a lad insane” (um rapaz insano).

Na tarde da última segunda-feira, depois de enviar para o jornal um primeiro artigo sobre Bowie, isolei-me no escritório com uma pilha de CDs para pronunciar o seu nome. Chorei um pouco. Por Bowie, pelos três amigos que perdi em 2015, pela minha gata querida, por todos os que vamos passar. Apesar do evidente paradoxo, nenhum artista capturou tão bem a fluidez do tempo, das pessoas, dos seres — rumo ao fim, individual, ou ao Fim, coletivo. Sua troca de personas e estilos foi a dramatização disso.

Pulei de CD em CD, de faixa em faixa, sem cronologia ou critério. Percebi, porém, que do meio de tantas belezas emergiam as minhas “dez mais” de Bowie agora, na hora da sua morte; só estavam excluídas faixas do sublime último disco, “Blackstar”, por terem sido ouvidas quase todas as vezes sob comoção. Ei-las:

“Time”, do álbum “Aladdin Sane”. Tal qual Reed, Bowie tinha uma queda por música de cabaré, à la Weill & Brecht. Esse é um lindo exemplo. Na letra, o toque de sacanagem é dado pelos versos “Time — He flexes like a whore/ Falls wanking to the floor” (Tempo — Ele se flexiona como uma puta/ Cai no chão tocando punheta).

“Life on Mars?”, do álbum “Hunky dory” (1971). A balada sobre inadequação. Garota vai ao cinema contra a vontade da mãe, mas com a bênção do pai, se desencontra da amiga e assiste sozinha a um filme chatooo. O piano é tocado por Rick Wakeman, então em vias de se tornar tecladista do Yes. Inspirou uma série policial da BBC.

“Changes”, também de “Hunky dory”. No obituário que escreveu no “New York Times”, Jon Pareles disse que, se Bowie tinha um hino, era esse. O homem das mil mutações louva as mudanças. Ouvir aquela gaguejada teatral em “ch-ch-ch-ch-changes” ainda me causa taquicardia 40 anos depois de tê-la ouvido pela primeira vez.

“I would be your slave”, do álbum “Heathen” (2002). Nick Hornby ensinou que toda boa lista — ou fita K7 — deve ter um toque de obscuridade. O meu vem de um CD gravado sob o impacto do Onze de Setembro. Triste, triste, com um quarteto de cordas e uma letra romântica: “Eu vou te dar todo o meu amor/ Nada mais é de graça”.

“Absolute begginers”, da trilha do filme homônimo, de Julien Temple (1986). O ator Bowie trabalhou no musical ambientado na Londres de 1958. Uma das frases de publicidade dizia “alarmante elegância, tumultos, romance e be-bop”. A música-tema é um baladão com toques jazzísticos. Gil Evans arranjou sopros em outras faixas.

“Warszawa”, do álbum “Low” (1977). Parceria com o tecladista e produtor Brian Eno. É uma peça minimalista, sombria, quase toda instrumental. “Falava” da visita de Bowie à capital da Polônia, então sob o regime comunista, mas evocava, também, o massacre do gueto judeu pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial. 

“Heroes”, do álbum homônimo (1977). Um pouco de bravata, outro tanto de desespero: “Não somos nada/ e nada vai nos salvar.” Philip Glass se inspirou no álbum inteiro para compor a sua quarta sinfonia. Gosto muito da versão cantada em inglês e em alemão por Bowie, incluída na trilha de “Christiane F.”, de Ulrich Edel (1981).

“Look back in anger”, do álbum “Lodger” (1979). A aceleração desse rock incluído no disco final da chamada “Trilogia de Berlim” — com “Low” e “‘Heroes’” — sempre me pareceu o Bowie quintessencial: urgente. Além disso, a música destaca uma faceta tão importante em sua arte vocal quanto o falsete andrógino: o crooner viril. 

“The stars (are out tonight)”, do álbum “The next day” (2013). Bowie estava sem gravar havia dez anos quando — mais uma vez — surpreendeu-nos com um trabalho que mostrava que o rock podia se tornar sessentão sem perder dignidade e ousadia. Essa é a minha faixa favorita. Trata da (dis)função das celebridades em nosso planeta.

“Moonage daydream”, do álbum “The rise and fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” (1972). Difícil escolher uma só faixa deste que provavelmente é o melhor disco de um cara que nunca — nunca — lançou nada menos que bom. A guitarra de Mick Ronson, o coro “de boca fechada”, os crescendos arrebatadores...

Obrigado, Bowie, viva em paz. 

Arthur Dapieve

O GLOBO, 15 DE JANEIRO DE 2016 

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