March 28, 2016

Carta a Beatriz


antonio prata

 

Cara Beatriz: na última terça (8) você escreveu aqui pro jornal se dizendo espantada com a minha crônica de domingo (6); "após uma semana de fatos surpreendentes na política", "num momento tão importante para uma boa análise", um de seus "colunistas preferidos" havia se saído com um texto "bobo e sem propósito".

Fico feliz por me citar entre seus "colunistas preferidos", mas me pergunto se o elogio foi sincero ou só uma gentileza. Afinal, quase toda semana o Brasil nos brinda com "fatos surpreendentes na política" e quase todo domingo, em vez de uma "boa análise", publico textos que poderiam ser considerados bobos e sem propósito.

Não o faço por desvio de caráter nem para irritá-la, Beatriz, mas por dever de ofício. O cronista é um cara pago para lubrificar as engrenagens do maquinário noticioso com um pouco de graça, de despropósito e -vá lá, por que não?- de bobagem. Minha função é lembrar o leitor desolado entre bombas na Síria, tiros na Rocinha e patacoadas em Brasília que este mundo também comporta mangas maduras, Monty Python, Pixinguinha.

O Rubem Braga atravessou duas ditaduras e seu maior libelo à liberdade não é um texto contra o pau de arara, mas uma carta/crônica ao vizinho que havia reclamado do barulho. O AI-5 podou direitos políticos e a liberdade de expressão, mas não impediu que continuassem a brotar trocadilhos da pena do Millôr Fernandes. (Afinal, como ele mesmo disse, "A justiça farda, mas não talha"). Se você achou as minhas piadas infames, tá legal, eu aceito o argumento, mas se a crítica é por ter feito piada num momento crítico eu não acolho; that's my job.

É verdade que nem sempre sou um funcionário exemplar. Às vezes a vontade de comentar o noticiário é mais forte do que eu e fraquejo: acabo dando meus pitacos. Sobre a semana passada, contudo, sobre esta semana e os últimos meses, não tenho muito o que dividir contigo além da minha perplexidade e da minha tristeza.

Dizem que vivemos um Flá-Flu. Quem dera! Saudades dos tempos em que havia dois times e eu sabia para quem torcer. Hoje, em que arquibancada vou me sentar? Da Dilma e do PT, que mentiram e quebraram o país para se reeleger? Do PSDB, que varre chacinas para baixo do tapete estatístico e vota pautas bomba para apressar o impeachment?

Pra ser franco, nem entendo direito que campeonato está sendo jogado. O que é a Lava Jato, por exemplo? É uma ação imparcial para acabar com a corrupção generalizada entre nós ou uma revanche classista, visando punir os ilícitos apenas de um lado? E se for uma revanche classista para punir ilícitos apenas de um lado, isso por acaso perdoa os ilícitos cometidos por tal lado? Estamos vivendo um momento catártico, tirando esqueletos seculares do armário? Ou voltando na história, fortalecendo os eternos donos do poder e seus velhos capitães do mato?

Não sei, realmente. Às vezes sou Flá, às vezes sou Flu, mas na maior parte do tempo vaio os dois times e procuro no horizonte, sem sucesso, um Botafogo ou Vasco que venha resgatar a minha esperança no ludopédio político. Lamento, Beatriz, mas atualmente a única "boa análise" que tenho sido capaz de fazer é às quintas, 15h, deitado num divã na rua Apiacás –e nem sempre é assim tão boa.

Um abraço.

FOLHA DE SÃO PAULO, 13 DE MARÇO DE 2016 

March 22, 2016

Ainda desigual


Marcus Faustini

O discurso da moralidade — bem e mal, puros e impuros — não será suficiente para criar o pacto de que a sociedade brasileira precisa na superação da crise política. Mostrar claramente quais são as propostas de continuidade da diminuição das desigualdades é um pressuposto básico.

A crise política é também uma dimensão da cultura. Sempre é? Por definição é possível dizer que sim, pois a política expressa, além das dimensões de disputa de poder, modos culturais em encontros e desencontros. O que queremos ressaltar aqui, entretanto, é que a atual crise política expõe a fragilidade de um modelo de representação que não dá mais conta dos sujeitos do novo tecido social brasileiro. Eles trazem uma demanda por uma nova forma de se fazer política? Sim! Mas, sobretudo, exigem um lugar claro para a diminuição das desigualdades.

Muitas foram as reações à ida, pela condução coercitiva, do ex-presidente Lula para prestar depoimento nas investigações da Lava-Jato. Daquelas que apontavam nesse ato mais uma investida contra o estado democrático de direito até as que viam, nessa ação, a comprovação de culpa do líder popular. Entre as reações contrárias, uma delas não pode ser taxada de reação orquestrada de militantes “pagos”: a fala de diversos jovens que não são petistas, bastante críticos cotidianamente ao partido, defendendo as conquistas sociais e vendo Lula como um espelho desses avanços. O ato de conduzi-lo dessa forma soou como um espetáculo para atingir o imaginário dessas conquistas.

Esses jovens são formadores de opinião dessa geração de origem popular que, mesmo com a diminuição de seu poder econômico com a crise, mantém códigos médios urbanos alcançados pelas políticas de mobilidade social acentuadas no governo de Lula. Não à toa, os engajamentos dessa juventude estão focados nas questões do direito à cidade e respeito às minorias. Precisam que a cidade seja barata e democrática por serem uma classe média emergente com desejo de experiências culturais e de protagonismo nas representações. Para aqueles que se colocam em oposição ao PT, o medo de assumir compromissos com projetos claros de melhoria de vida das pessoas revela uma tentativa de flerte com uma elite conservadora, que se sentiu ameaçada em dividir os espaços político e público e nas representações sociais do país com esses que ganharam força na última década. Enquanto a economia dava sinais positivos, isso era até tolerável, desde que existisse a manutenção da hierarquia em quem determinava o que poderia ser absorvido ou não.

Não estamos dizendo aqui que existiu ou não corrupção envolvendo Lula. Isso deve ser investigado com a sobriedade de que a Justiça precisa. Mas a espetacularização presente torna-se um instrumento para desgaste político daqueles que ocupam o governo central muito mais do que o combate aos processos de corrupção, gerando dúvidas de seus objetivos e reações desses que emergiram no novo tecido social proporcionado pelas mudanças no país.

O maior desafio do país é a desigualdade social, é preciso lembrar sempre! Políticas para sua superação não podem ser apenas um plus, uma benevolência, de quando estamos em momentos de “bonança” na economia. Suas causas são as já exaustivamente debatidas falta de acesso a oportunidades iguais para todos, mas, sobretudo, a concentração de renda. O racismo estruturado dentro do Estado e nas representações na vida pública é instrumento da manutenção dessas desigualdades. A corrupção é uma das práticas de relação com o Estado que também mantêm círculos de poder para poucos. É comum escutarmos que só o acesso à educação de qualidade pode diminuir a longo prazo essas desigualdades e suas formas de manutenção. Mas a diminuição da desigualdade não pode ser um projeto apenas de futuro. Ela é uma dimensão de nosso tempo presente. As políticas sociais, reparadoras e emancipatórias, comprovaram-se eficazes caminhos nos últimos anos. Formaram esse novo tecido social de indivíduos que possuem a clareza da necessidade dessas políticas. Fico me perguntando por que políticos de oposição não assumem com clareza a defesa das políticas sociais e se debruçam em propostas de seu desenvolvimento, corrigindo distorções e racionalizando o meio de campo para que essas consigam chegar a mais pessoas. Ao apenas dizer, laconicamente, que são a favor da continuidade sem que isso se traduza em gestos de compromisso fazem parecer que os discursos contra Lula e o PT estão ligados mais ao sucesso de suas políticas de ascensão dos mais pobres do que exatamente por possíveis envolvimentos em esquemas de corrupção.

As políticas sociais não podem ser apenas assistencialistas, para cuidar, mas manter uma determinada condição. Devem, sim, produzir mobilidade social, onde esses atendidos sejam protagonistas da vida social. Essa é a expectativa de grande parte dos cidadãos do Brasil do século XXI. Uma tarefa de qualquer partido que deseja fazer parte de nossas vidas.

O GLOBO, 8 DE MARÇO DE 2016


Narrativas

Fred Coelho

 Em momentos de crise, narrativas são preciosos objetos de disputa. Narrar algo, isto é, contar, relatar, fabular sobre algum evento ocorrido, é o que fazemos todos os dias. Muitas vezes, ficamos também a narrar a narrativa alheia, produzindo camadas cujas origens podem ser muito distantes de nós no tempo e no espaço. Sempre vale conferir de onde vem o que se repete. O fato é que temos algumas responsabilidades sobre as narrativas que escolhemos para nos posicionar no mundo.

Adotamos pontos de vista de acordo com hábitos, vivências e espaços que condicionam os nossos discursos e influem diretamente no que estamos narrando. No atual cenário em que plataformas de escrita se multiplicam diariamente, os monopólios tradicionais das narrativas sobre as informações muitas vezes demonstram esgotamentos. Além disso, há hoje a possibilidade, inédita em outros tempos, de se acessar a qualquer momento um amplo arquivo virtual para pesquisar assuntos e criar sua própria versão dos fatos. A internet desestabiliza narrativas oficiais e cria um ambiente arisco tanto para certezas cegas quanto para suposições. Temos cada vez mais pessoas escrevendo e pesquisando, e isso aumenta, também, as contradições das narrativas elementares que muitas vezes vemos circularem no senso comum. Boatos nascem na mesma velocidade com que são desmentidos.


Nesse sentido, aquilo que estamos lendo e ouvindo nos últimos dias sobre o quadro político brasileiro gera apreensão. Temos visto em jornais e sites a promoção diária de uma disputa política polarizada por certas opções narrativas que simplificam o país ao apostar em fabulações nocivas. O ponto aqui não é negar o confronto (sempre de ideias), mas sim lamentar irresponsabilidades. São escritas e falas que criam climas de expectativa com palavras no mínimo mal escolhidas. Vimos recentemente jornalistas experientes, que sabem exatamente o impacto de certas expressões no imaginário dos seus leitores, utilizarem termos como “milícia” para se referir aos apoiadores do PT. Isso é um fato? O partido tem membros armados e treinados para o confronto contra os seus inimigos? É prudente utilizar a mesma expressão para definir alguns poucos militantes que brigam nas ruas (sozinhos? Contra pessoas cordatas? Ou contra pessoas tão agressivas quanto seus inimigos?) e os meliantes que ocupam as comunidades cariocas com brutal violência contra sua população? Em dias de incêndio, palavras são gasolina quando a intenção do seu uso é dúbia. Nessa narrativa, vivemos diariamente a iminência de uma ruptura institucional sem volta, com militares e milicianos prontos para se enfrentar nas ruas. É isso mesmo que estamos vendo no dia a dia dos milhões de trabalhadores, estudantes e da população em geral? Olhe ao seu redor, pense bem e responda.


Para além da obviedade embutida nessa narrativa do confronto, fica óbvio que aí se instala uma armadilha e a resposta do outro lado subirá sempre de tom. Quem ataca? Quem defende? Quem é vítima e quem é algoz? Um texto que anuncia um suposto confronto em âmbito nacional não é a mesma coisa que uma reportagem que relata ocorrências esparsas. É uma fabulação. Fica aberto a qualquer uso, sem base lógica para além de suas intenções especulativas. Alucinados de todos os espectros ideológicos são movidos por brechas como essas e propagam sandices militarizadas, arroubos destrutivos ou ódios fundamentalistas. O que lemos e ouvimos por aí cada vez mais é a intolerância como dispositivo de hipocrisia acusatória. Alimentá-la sem lastro no real é uma temeridade.


Somos inimigos entrincheirados, apenas? Sabemos que não. Há narrativas contemporâneas mais amplas, que englobam a arte, o planeta, os corpos, a espécie, os afetos, o futuro. Existem também narrativas mais subjetivas, que enxergam a política de forma expandida, através dos ganhos concretos que ocorreram em suas vidas e dos que vivem ao seu redor. Há ainda as narrativas que apenas observam, isentas do quadro atual em prol de uma aposta para além dos nomes e eventos que se desenrolam. E existem até mesmo narrativas fanáticas que invocam totalitarismos salvadores ao redor de “mitos” cultivados pelo ódio à diferença. Tudo solto na plataforma do ar.


E assim um país plural como o Brasil se vê em 2016 em plena “guerra fria”, falando de militares, comunistas, supostas milícias, de Cuba, do imperialismo, de Deus, da família, de petróleo etc. Não que problemas crônicos estejam ultrapassados — afinal, a desigualdade social permanece inalterada em sua estrutura perversa, e o saneamento básico, por exemplo, continua sendo uma tragédia social secular entre nós. Mas há muita coisa em jogo no país para além das narrativas que apostam no conflito. É nesse sentido que escolher lados em uma democracia é fundamental, desde que seja para superar impasses — e não para alimentá-los com medos, paralisias e violências.


O GLOBO, 9 DE MARÇO DE 2016 

March 20, 2016

Quando as casas caírem


Celso Rocha de Barros

 

É natural que petistas se sintam abalados com a delação de Delcídio do Amaral e com o depoimento de Lula na última sexta. Já a comemoração da oposição é um mistério: ou concordam com os petistas exaltados, que dizem que a Lava Jato é só uma jogada contra o PT, ou não andam prestando atenção no que está acontecendo ao seu redor. Se a Lava Jato for até o fim, muitas outras casas cairão.

Segundo a reportagem da "Istoé", Delcídio denunciou um acordo entre governo e oposição para livrar Lula no Mensalão. Se houve um acordo desses, não foi feito com nenhum peso-leve. Sargento não assina armistício.

Pessoalmente, duvido que Delcídio tenha provas do acordo (se as tinha, deve ter sido o dono da República nos últimos anos). Mas tampouco vimos provas contra Dilma, e a maioria dos analistas está tratando as denúncias incomparavelmente menos graves contra a Presidente como já demonstradas.
Além disso, há uma boa chance de que a investigação sobre as contribuições de campanha cheguem na oposição. Fontes próximas a Marcelo Odebrecht revelaram à coluna de Mônica Bergamo de 1º de março que, se o empresário optar pela delação, entregará tanto o PT quanto a oposição. Hoje sabemos que contribuir para as campanhas do PT era um investimento muito lucrativo. Investir na alternativa (doar para a oposição, como foi feito) era crise de consciência? Os investigadores da Lava Jato devem estar perguntando isso aos delatores, suponho.

É importante saber isso, porque não ser otário sempre vale alguma coisa. Eduardo Cunha é só o caso mais claro, mas tem muita gente querendo entregar o PT para a opinião pública na esperança de que isso arrefeça os ânimos e permita mudar de assunto antes que o resto da turma seja pego. O discurso que coloca o PT como único participante do esquema das empreiteiras é um plano de fuga, exatamente como o túnel do traficante mexicano El Chapo.

A política brasileira sempre foi financiada por empreiteiras e outras empresas que tinham negócios com o governo. É ótimo que os órgãos de fiscalização finalmente tenham atacado esse problema. Mas o que fazer diante da crise do sistema?

Minha sugestão: prendam quem tiver que ser preso, mas preservem os partidos. Os únicos partidos fáceis de fundar são os picaretas. Os que nasceram nas disputas concretas da sociedade civil são construções fáceis de quebrar, mas difíceis de construir. Se o PT afundar porque petistas roubaram, outros ladrões aparecerão, mas talvez não haja outro movimento sindical como o do ABC. Se PSDB, PMDB e DEM afundarem por motivo análogo, outros ladrões aparecerão, mas, se Deus quiser, não vai ser necessário lutar contra a ditadura.

Tratem com cuidado o que a sociedade civil já conseguiu fazer em termos de auto-organização. Se novos partidos igualmente legítimos se fortalecerem, como a Rede, ou o Partido Novo, que se aliem aos que já existem, ou tentem substituí-los após uma série de vitórias eleitorais. Com uma polícia e um Judiciário eficientes, com o que já temos de sociedade civil e imprensa livre, é só deixar que o sistema político evolua naturalmente.

Fazer o contrário é ser feito de otário por gente que até mesmo o sistema atual achou picareta ou demagógica demais.


FOLHA DE SÃO PAULO, 7 DE MARÇO DE 2016

March 19, 2016

Golpes em série


Arnaldo Bloch

Instituições disputam campeonato nacional de tiro no pé

Há seis meses parei de fumar. Mas, nesta quinta-feira, dia seguinte à divulgação do diálogo de Lula e Dilma, está difícil. Fui agora ao pátio do GLOBO fumar um cigarro, desses para situações de emergência, na gaveta, com dois botões acionadores de menta e blue ice. No caminho recebo zapzaps pedindo que escreva contra o golpe. Que golpe?, respondo. São tantos os que andam sendo desferidos, por todos os atores envolvidos na cena!

Alguns golpes são contra os próprios interesses de quem golpeia. O famoso tiro no pé. Como diz um amigo, o Zé José, assistimos a um campeonato nacional de tiros no pé. O tiro no pé da condução coercitiva, que leva ao tiro no pé do destempero de Lula, acusando as elites, ele que abriu a guarda para as piores oligarquias. O tiro no pé do pedido de prisão pelos promotores de São Paulo; o tiro no pé da juíza que envia a decisão a Curitiba.

O tiro no pé de Dilma ao “renunciar à renúncia”. O tiro no pé do convite (e do aceite) de Lula para ser ministro. O tiro no pé de Dilma ao telefonar para Lula (não podia ser um bilhetinho?). O tiro no pé de Moro ao divulgar o diálogo, gravado, aliás, após ele ter suspendido a escuta.

Quem vai dar o último tiro no pé?

Há outro cigarrinho no maço. Não fui à manifestação de domingo. Não bati panela. Não bato panela. Não terei ido tampouco à manifestação do PT do dia 18 (hoje é quinta-feira, a crônica sai no sábado, sabe-se lá se haverá sangue nas manchetes). Estou enjoado. Faz tempo que me decepcionei com Lula. Nunca nutri por Dilma qualquer esperança. Aécio jamais convenceu, e parece que o dia dele chegou. Não gosto da vaidade dos juízes, que se precipitam para virarem heróis e extrapolam, exorbitam, golpeiam, depreciando os próprios méritos.

Quem confia em Temer? Em Renan? O que é o PMDB, fiel da balança do juízo final? O que terão os empreiteiros ainda a dizer sobre a era FH? Se Dilma cair, se Lula cair, e que caiam se tiverem que cair, quero ver essa parada seguir seu curso, até o fim. Prendam-se todos se forem capazes. Mas não precisamos de heróis.

Precisamos de democracia. De processo eletivo. De transição dentro da Lei. De renovação, e não de destruição da política, de vulgarização da figura da Justiça. Chega dos loucos agressivos de ambos os lados que saem xingando, estapeando, brandindo boçalidades contra quem não tem a mesma opinião. A histeria vigente, os berros esgoelados nas janelas, o ódio de classes, a arrogância, as sentenças antes do julgado, a ignorância, o analfabetismo funcional de promotores que conhecem as teorias sociais através de orelhas de livros e gostam de posar para fotos com óculos escuros azulados olhando para o horizonte do breu. Não aguento a empáfia do ex-AGU Gilmar Mendes.

E Eduardo Cunha? Está lá, conduzindo olimpicamente o processo de impeachment, e lá vai permanecer até que dele não mais se necessite. Então, será jogado num buraco, mas nunca se sabe: ainda está por vir, quem sabe, o dia em que o chamaremos de presidente da república. Neste dia, aí sim, talvez valha a pena sair às ruas para vomitar e fazer selfies em série.

O terceiro cigarro. O último do maço de emergência. Bom que a crônica já passou da metade, antes que eu cometa alguma bobagem maior. Vou descer para fumar e já volto. Voltei. Não, não voltei a fumar. Voltei a escrever. Uma conhecida de São Paulo, no Face, relata que um sujeito na Brigadeiro Faria Lima com um BMW, deixando a garagem de algum prédio corporativo anexo a um ponto de ônibus, acelerou para que ela saísse da frente. A mulher reclamou, dizendo que deve-se respeitar o pedestre. O homem abriu a janela e protestou: “Pobretoooooonaaaa!!!!!!”

E rugiu o motor. Pobretona. Porque estava no ponto de ônibus. É risível, mas faz sonhar com uma legislação em que o sujeito flagrado dizendo tal frase fosse encarcerado em rito sumário por crime hediondo.

Ouço aqui que um moleque de 17 anos gritando “Não vai ter golpe” foi espancado em São Paulo. Uma pró-Dilma esquentada relata: “Passei pela Paulista à noite para pegar o metrô. Encontrei com a manifestação no meio do caminho. Atravessei o aglomerado de verde e amarelo em frente à Fiesp, vestida também de verde e amarelo. Fui confundida com manifestante. Um cara veio me entregar uma bandeirinha, gritando ‘fora Lula’. Respondi que não compactuo com golpe, sorri e continuei andando. O cara me seguiu. Puxou meu braço, me mandou pegar a bandeira e lutar por um Brasil melhor. Peguei. Rasguei. Repeti que não apoio golpe. Levei um murro na boca do estômago, uma cusparada e um ‘corre, comunista!’”.

Não que a militância do PT seja flores. Ao contrário. A gente conhece a fúria. E, repito, a coluna foi fechada antes das manifestações de sexta. Mas que homens honrados à cata de um novo Brasil são esses que saem dando porrada?

Acabou o cigarro. Parei novamente de fumar. Mas a fumaça permanece, a fumaça de um Brasil desorientado, míope, incapacitado de julgar a que ponto a marcha da insensatez poderia ter sido evitada, o quão desnecessário teria sido chegarmos a este ponto.

O GLOBO, 19 DE MARÇO DE 2016

March 18, 2016

A babá


A polarização não hesitou em fazer de uma doméstica o ícone de uma disputa política

. Flávia Oliveira
 
Triste do país onde cidadãos têm a individualidade desprezada em prol de embates políticos. Aconteceu no Brasil das manifestações do domingo, 13 de março. A caminho dos protestos na Zona Sul carioca, uma babá, vestida de branco, foi fotografada empurrando um carrinho com dois bebês. À frente, seguia o casal que a emprega, usando as camisetas auriverdes que coloriram a mobilização contra a corrupção, a presidente Dilma, o ex-presidente Lula e, com menos ênfase, outros personagens da vida política nacional igualmente às voltas com denúncias e processos. A imagem de João Valadares, repórter do “Correio Braziliense”, detonou o debate furioso (mais um) entre a direita-coxinha e a esquerda-petralha, classificação binária que grassa nas redes sociais, a ágora da era digital.

O país está mergulhado numa crise política que só faz se agravar, a economia enfrenta acelerada agonia, a agenda de direitos civis segue ameaçada, e a militância virtual se entrincheirou para discutir “a babá”. Uma mulher negra no cumprimento de seu ofício teve a imagem e a narrativa sequestradas por dois grupos interessados tão somente no vale-tudo da disputa ideológica.

De um lado, ficaram os que viram na cena do casal com os filhos e a empregada doméstica a representação recorrente, até no branco do uniforme, desde que o Brasil é Brasil. Basta lembrar das gravuras de Jean-Baptiste Debret com senhores e mucamas do século XIX. Daí surgiu a profusão de comentários, provocações e memes buscando associar os atos de domingo à tentativa de retorno (ou manutenção) de status quo pelas elites e retirar do movimento a intrigante complexidade exibida nas ruas.

No lado oposto, ficou o bunker dos empregadores de bem, liderado por Claudio Pracownik, o patrão fotografado e, horas depois, identificado como vice-presidente de Finanças do Flamengo. Ele próprio reagiu às críticas e ironias com texto, numa rede social, em que explicitava posições políticas e alardeava a carteira assinada da babá e as contribuições trabalhistas em dia. De quebra, permitiu-se a grosseria de afirmar que a empregada — até ali, completamente fora do debate da qual era pivô — estava “livre para pedir demissão, se achar que prefere outra ocupação ou empregador”.

Sim, estão certos os que denunciaram que o trabalho doméstico é mazela histórica da sociedade brasileira, herança da colonização escravocrata. A consulesa da França em São Paulo, Alexandra Loras, que já morou na Inglaterra, na Alemanha, na Espanha e na Suécia, costuma dizer em entrevistas que o Brasil é o único país do mundo onde ela vê babás vestidas rotineiramente de branco. Negra, ela própria já foi tida como ama do próprio filho, um menino de pele clara.

Uma década atrás, em reportagem para a “Revista O Globo”, eu mesma escrevia sobre o quanto a emancipação de mulheres de classes média e alta no Brasil se ancorou na transferência das atribuições familiares para empregadas — principalmente jovens e mulheres negras — mal remuneradas e sem direitos trabalhistas. É Brasil Colônia ao infinito. Em 1940, a Obra do Berço, ainda hoje em atividade no Rio, passou a funcionar como internato “devido a uma grande demanda de domésticas que trabalhavam na Zona Sul e não tinham com quem deixar seus filhos”, diz o site da instituição.

A PEC das Domésticas — que estendeu aos trabalhadores do lar benefícios garantidos pela CLT aos demais profissionais desde meados do século XX — só foi promulgada em 2013 e regulamentada no ano passado. Mesmo assim, ainda anteontem, o IBGE informava na Pnad Contínua que apenas um em cada três trabalhadores domésticos do Brasil (6,2 milhões, ao todo) tem carteira assinada. A renda média da categoria em fins de 2015 era de R$ 759, a menor entre dez atividades pesquisadas.

O fato de contratar legalmente e quitar encargos não tira dos empregadores a obrigação de refletir sobre uma realidade social tão duradoura quanto inaceitável. Se o tal marciano desavisado baixar no Brasil por esses dias vai se deparar com um exército de mulheres, predominantemente negras e vestidas de branco, a atender e cuidar dos filhos das outras em praças, parques, casas de festas, piscinas de clubes. Os lares da classe média e da elite, ainda hoje, são teimosamente construídos com dependências de empregada que remetem à senzala, porque a prática de dormir no trabalho não foi abolida com a Lei Áurea.

A reflexão é essencial e profunda, mas não foi ela que motivou o confronto virtual do início da semana. Este foi resultado da polarização que não hesitou em fazer de uma trabalhadora doméstica o ícone de uma disputa política para a qual ela não foi chamada. Maria Angélica de Lima, 45 anos, moradora de Nova Iguaçu (RJ), mãe de duas filhas, patroa de uma babá, eleitora de Aécio Neves (PSDB), insatisfeita com o governo, mas contra o impeachment de Dilma — soubemos de tudo isso pela reportagem de Bruno Alfano, anteontem, no “Extra” — foi silenciada e ignorada na web. Os gladiadores virtuais se apropriaram de sua imagem e subtraíram dela o protagonismo, a individualidade, o direito de contar a própria história. É algo que não se faz. Por causa alguma.
 
O GLOBO, 17 DE MARÇO DE 2016 
 

Pegaram você


De RENATO JANINE RIBEIRO

"Esqueçam por um momento que foram Dilma e Lula os grampeados ilegalmente ontem à tarde. Pensem que, agora, não há mais limite algum ao grampo ilegal e a seu uso igualmente ilegal. A qualquer momento, um policial e um juiz podem mandar gravar você. Você, empresário, psicólogo, o que seja. Conheço psicólogos que atendem pelo telefone. Podem ser grampeados - e com boas razões, porque, afinal, há clientes que superfaturam ou corrompem, e que contam isso ao terapeuta. Há sacerdotes que ouvem confissões. Confissão é de coisa errada, não é? Ótima razão para gravar e apurar. Empresários podem sonegar, ótima justificativa para grampeá-los, todos, não é? Mesmo que não soneguem. Isso já começou, quando o sigilo acusado-advogado foi rompido. Claro, o acusado é bandido, não é? E nestas gravações, caro amigo, cara amiga, podem descobrir coisas que nem desonestas são, mas que vão te causar um mal danado. Podem descobrir, empresário, que você pretende lançar um novo produto da praça. E podem divulgar este segredo para seu concorrente. Podem descobrir que o analisando teve um filho antes de casar, que pretende reconhecê-lo, mas que está difícil fazer isso porque vai dar problemas com o cônjuge. Todo mundo tem uma vida íntima. Esta vida íntima pode ser gravada. Pode ser divulgada pela Internet ou vendida a uma pessoa que não gosta de você. 

É por isso que as liberdades burguesas - faço questão de usar o nome meio pejorativo que a esquerda lhes deu, mas que tem uma certa razão, porque são liberdades do indivíduo contra a interferência do Estado - são tao importantes. Hoje muitos estão felizes porque acham que pegaram Lula e Dilma. Na verdade, pegaram você. Você não tem mais proteção contra os agentes da lei. Eles farão com você o que quiserem. Poderão chantagear você. 


E não venha com o quem não deve não teme. A vida íntima não é feita de ilegalidades. Ela é feita de segredos, sim, que ninguém tem o direito de invadir. Ninguém tem o direito de saber uma multidão de coisas que são suas. OK, Mark Zuckerberg sabe. Mas ele está interessado em big data e não em você especificamente. 


Então fique contente, e quando sua vida pessoal for exposta, lembre que você apoiou isso.


(Reflexão depois de ouvir a gravação Lula-Eduardo Paes. Nada de relevante para a sociedade saber, Nada mesmo. Puro exercício de prepotência: vejam quem manda. E mesmo isso - a brincadeira de Paes que Lula, você tem alma de pobre - está vindo à tona. Quando pegarem sua vida íntima, debocharem de seus gostos, venderem sua intimidade, aproveite sua descida aos infernos para fazer contrição, confissão, talvez comunhão)."

March 16, 2016

Quinze pitacos sobre a situação política


Cid Benjamin

1) Com os atos deste domingo, a conjuntura mudou. Seja pela dimensão muito expressiva que eles tiveram, seja pelo fortalecimento da extrema-direita dentro do bloco de oposição.

2) Não serve de nada à análise política tentar minimizar a força das manifestações com afirmações do tipo “havia poucos negros” ou “nas diretas havia menos gente, mas a população do país, na época, era menor”. Isso é tentar tapar o sol com a peneira. As manifestações de ontem foram muito expressivas. Em São Paulo, a PM de Alckmin estimou em 1,4 milhão de pessoas, número sem dúvida exagerado. O Datafolha, mais confiável, fala em meio milhão. É muita gente.

3) A espontaneidade nas ruas hoje é da direita. E, nas ruas, espontaneidade é força. Cartazes, fantasias e iniciativas individuais mostram pujança do movimento. Hoje é a direita quem faz isso. Os atos em apoio a Dilma têm mais a cara de aparelhados, de coisa chapa-branca, com ônibus alugados e faixas preparadas por sindicatos
.
4) Como a direita ganhou a hegemonia nas ruas, arrastou o centro. Nem todos os que foram às manifestações são de direita, mas esta dá a direção ao movimento. E, cada vez mais, quem faz isso é a extrema-direita.

5) É preocupante o fato de que lideres políticos da direita tenham sido hostilizados e chamados de “bundões”, enquanto Bolsonaro era festejado. Mesmo que Aécio, Alckmin e Serra tenham gordura e possam recuperar sua influência junto a essa gente, o empurrão das ruas os levará ainda mais para a direita.

6) O carimbo de “corruptos” está pregado na testa do PT e do governo Dilma. Não importa o quanto de verdadeiro isso seja (e, em certa medida, o é). O fato é que é um dado da realidade. Nas manifestações de rua, essa tem sido a principal bandeira. E, por favor, não vale culpar a mídia, que dá mais destaque à roubalheira do PT do que à dos partidos de direita. Ou não se sabia que a mídia atuaria assim? Em vez de reclamar do Jornal Nacional, os petistas deveriam se perguntar por que sempre nomearam prepostos da Globo como ministros das Comunicações e nunca se atreveram a dar qualquer passo no sentido de uma Lei de Meios.

7) A direita tem um novo ícone: Sérgio Moro. E ele aceita, de bom grado, este papel. Ou não redigiria uma nota agradecendo o apoio que recebeu dessas manifestações. Não é comportamento que se espera de um magistrado.

8) Dilma está nas cordas. Com a crise e o fim da situação que permitia ampliar os ganhos dos ricos e, ao mesmo tempo, desenvolver políticas sociais compensatórias, chegou ao fim a lua de mel do grande capital com o governo. E ele já não quer mais que Dilma se limite a assumir o programa antigo do PSDB. Quer mais. Exige ir mais longe do que as medidas do ajuste fiscal de Dilma. Deseja radicalizá-lo. Basta ver o programa “Uma ponte para o futuro”, apresentado pelo PMDB, com apoio dos tucanos.

9) Um complicador para retirar Dilma é a diferença de interesses entre PSDB e PMDB e, também, as diferenças entre seus caciques. Embora eles tenham identidade quanto a um programa alternativo, divergem quanto aos passos para a derrubada da Dilma. A Aécio interessa que haja a impugnação da chapa Dilma-Michel Temer ainda este ano. Neste caso, haveria novas eleições em três meses e ele se beneficiaria do efeito “recall”. Marina Silva, que rasgou definitivamente a máscara e se alinhou com a direita, também prefere essa saída. Já Serra e Alckmin querem a eleição em 2018. Para tal, é melhor que Dilma só caia em 2017, pois nesse caso não haveria eleições imediatamente. Há outro complicador. Para o PMDB, não interessa a impugnação da chapa Dilma-Temer, porque o poder não ficaria nas mãos do vice. O caminho predileto do PMDB seria o impeachment de Dilma por conta de algum ato como presidente. Algo como as tais pedaladas. Mas isso ficou meio desmoralizado. Enfim, essa divergência de interesses dificulta a derrubada da presidente. Mais um complicador é que as presidências da Câmara e do Senado estão nas mãos de gente como Eduardo Cunha e Renan Calheiros. Tirar uma presidente alegando corrupção para deixar o poder com um desses dois é dose. De qualquer forma, isso tudo tem um limite. Se o desgaste do governo se aprofundar, a direita encontrará uma solução para derrubá-la.

10) Dilma está grogue e pode ser derrubada mesmo com as enormes concessões que fez. É possível que caia desmoralizada, o que seria o pior dos mundos. E tendo ajudado a desmoralizar a esquerda, seja por estelionato político, seja pelo fato de a prática do PT tê-la associado à corrupção.

11) Setores de extrema-esquerda se equivocam profundamente ao festejar o fato de Aécio, Alckmin e Serra terem sido hostilizados na Avenida Paulista. Esquecem que Bolsonaro foi aclamado. Esses setores de extrema-esquerda acham que isso mostra o acerto da bandeira “que se vayan todos”. Ora, na situação atual não há “que se vayan todos”. Ou alguém acha que o Congresso vai aprovar uma emenda constitucional encerrando o mandato de seus integrantes e chamando eleições gerais. O “que se vayan todos” hoje significa “que se vaya Dilma”. Não ver isso é cegueira. Aliás, a mesma cegueira que fez com que alguns desses grupos apoiassem os mísseis da Otan contra os governos da Líbia e da Síria, que resultaram na atual situação naquela região.

12) A esquerda que não se rendeu e está fora do PT e do governo deve combater o impeachment. Seja porque ele não tem base legal e representaria um perigoso precedente, seja porque o que viria é coisa pior. Basta ver o tal programa “Ponte para o futuro”, do PMDB. Nada mais voltado para o atraso político e social. Nas palavras do José Luiz Fevereiro, representa um autêntico trem-bala para o passado.

13) Essa esquerda tem que fugir do dilema: “Ou apoia Dilma, ou cruza os braços”. Apesar das dificuldades e de sua pequena expressão social, tem que buscar uma terceira via, juntamente com segmentos do movimento popular, na linha do “Povo sem medo”. Deve ser contrária ao impeachment e a ruptura institucional, mas deixar claro que é oposição à política direitista do governo Dilma. A partir daí, mostrar uma cara própria, com uma agenda de atos separada do PT e da CUT, cujas manifestações inevitavelmente se transformam em “olê, olê, olê, olá, Dilmá, Dilmá”. E que, não bastasse isso, têm essa leitura por parte da mídia. Ou seja, aparecem para a sociedade como se fossem manifestações de apoio ao governo antipopular da Dilma e do PT.

14) Não é uma situação fácil, como se vê. Mas é o que nos oferece a atual situação. O desfecho mais provável do atual período petista na condução do país, depois da eleição de quatro presidentes da república filiados ao partido, é a abertura de um ciclo de conservadorismo e de hegemonia da direita. E isso, não porque o PT tentasse fazer reformas reais e fosse derrotado por ter contrariado interesses das classes dominantes, como Allende ou mesmo Jango. Mas porque capitulou, abandonou suas bandeiras, lambuzou-se (para usar a expressão do chefe da Casa Civil) e acabou sendo usado e, depois, descartado, pelo grande capital.

15) Por fim, engana-se o segmento da esquerda que, iludido, pensa que o ônus disso tudo será apenas do PT. Para a maioria da população, o PT representa a esquerda, embora há tempos não seja mais isso (ainda que tenha integrantes de esquerda). Depois dessa experiência de governos petistas, não será estendido um tapete vermelho para os setores de esquerda críticos do PT. A eles também será feita a cobrança.

A vila perdida

paula cesarino costa

Olhando do alto, a Vila Autódromo é uma faixa de terra com um aglomerado de casas. Chegando perto são escombros do que um dia foi uma comunidade.

Segundo moradores, a ocupação começou nos anos 1960, quando pescadores instalaram moradias provisórias à beira da lagoa de Jacarepaguá. O autódromo veio depois. Os barracos aumentaram, casas de classe média foram construídas, melhorias urbanas foram conquistadas e as lutas por regularização e as ameaças de remoção se sucederam.

A vila tornou-se, especialmente para a imprensa estrangeira, símbolo do estilo truculento de fazer política pública no Brasil. Poderia ter se tornado o modelo de uma nova forma de tratar a política urbana.

Ao decidir pela remoção de várias famílias para a construção de via de acesso ao Parque Olímpico da Barra e para recuperação ambiental, o prefeito Eduardo Paes desprezou possibilidade de aproveitar, mesmo que em parte, projeto urbanístico premiado. Preparado por arquitetos da UFRJ e da UFF, previa menos remoções e menos demolições. Só agora, após remover, propôs reurbanizar.
Como bem resumiu o jornal britânico "The Guardian", enquanto Londres usou os Jogos para revitalizar o East End e construir habitações populares, o Rio está desenvolvendo terra vazia para um mercado de luxo.

São 31 prédios que abrigarão os atletas. Foram construídos e depois serão comercializados pelo empreiteiro Carlos Carvalho. Ao lado de Odebrecht e Andrade Gutierrez, investiu R$ 1 bilhão numa parceria com a prefeitura. Em troca, poderão explorar 40% da área que abriga o Parque Olímpico, vizinho à Vila Autódromo.

Carvalho, conhecido como o "rei da Barra", disse que não seria bom "arranhar" o destino de "bom gosto" da região com casas populares. Defendeu o espaço como "moradia de nobre, não moradia de pobre". Um retrato do Brasil. E do Rio.

FOLHA DE SÃO PAULO, 15 DE MARÇO DE 2016

March 15, 2016

Há um golpe no forno


elio gaspari

Deve-se à Constituição de 1988 a independência do Ministério Público e graças a ela existe a Lava Jato. Alguns dos larápios apanhados são grandes empresários. Outros, servidores de empresas estatais. Além deles, o procurador-geral Rodrigo Janot pediu a abertura de inquéritos envolvendo 22 deputados e 12 senadores. Pela primeira vez desde que Cabral deixou um degredado no Brasil, a oligarquia política, burocrática e empresarial foi ferida, exposta e encarcerada.

A Constituição de 1988 e o regime democrático permitiram o impedimento do presidente Fernando Collor, a posse de Itamar Franco e, anos depois, a nomeação de Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda, iniciando um período de reformas que restabeleceu o valor da moeda e modernizou alguns setores da vida nacional.

A Carta de 1988 tem defeitos e passou por mais plásticas que a atriz Kim Novak, mas funciona. Ela é clara: as eleições presidenciais realizam-se a cada quatro anos e assume quem tiver mais votos. Assim assumiram Fernando Henrique Cardoso, Lula e a doutora Dilma. Se o Congresso resolver encerrar o mandato do presidente, assume o vice. Assim foi com Itamar Franco. Hoje, assumiria Michel Temer.
A Constituição também determina que o Tribunal Superior Eleitoral pode cassar o mandato de uma chapa eleita e há um processo em curso nesse sentido. Se as acusações prevalecerem, Dilma e Temer vão para casa e, em até 90 dias, elege-se um novo presidente, com o voto de todos os brasileiros. Nada mal. (Caso a cassação ocorra no ano que vem, a eleição será indireta, votando apenas senadores e deputados.)

Desde a semana passada, com o agravamento da crise política e econômica, surgiu a ideia de uma reforma do regime, chegando-se a um parlamentarismo ou a uma excentricidade chamada de "semipresidencialismo" ou "semiparlamentarismo". Algo tão vago quanto uma semibicicleta. A proposta foi enunciada,de forma genérica e superficial, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Outro defensor da tese é o vice-presidente Michel Temer, que acumula a condição de pretendente ao trono (no caso do impedimento) com a de cliente da lâmina (no caso da cassação).

É golpe.

O parlamentarismo já foi rejeitado pelo brasileiros em dois plebiscitos, em 1963 e 1993, sempre por maioria acachapante. Com 77% a 17% dos votos num caso e 55% a 25% no outro.
Corre por aí que semipresidencialismo replicaria a experiência francesa. O paralelo é falso como um depoimento de comissário petista. Na França existia um regime parlamentar puro e caduco, até que, em 1958, no meio de uma guerra perdida e depois de um levante militar, o general De Gaulle tornou-se primeiro-ministro, com poderes emergenciais. Passados três meses, ele submeteu um projeto de Constituição ao povo francês e conseguiu 79,2% dos votos. A reforma de De Gaulle fortaleceu o presidente e enfraqueceu o Congresso. Ela entrou em vigor depois do referendo, não antes. O contrário do que se quer fazer no Brasil. (Quem souber o nome do atual primeiro-ministro francês ganha uma viagem à Disney.)

Em condições normais de temperatura e pressão, a manobra do semiparlamentarismo é inconstitucional. Ela precisa buscar na crise a legitimidade da emergência. O que se quer não é copiar as instituições francesas, mas reciclar uma gambiarra do andar de cima brasileiro. Pretende-se replicar 1961, quando no meio de uma crise política e militar aprovou-se em poucos dias o regime parlamentarista para mutilar os poderes de João Goulart. Foi golpe.

Quando se respeita a Constituição, as crises ajudam a fazer grandes mudanças. A posse de Itamar Franco e a eleição de Tancredo Neves são dois exemplos recentes. Havia a crise, preservou-se o regime e foi-se em frente.

Recuando-se no tempo, o vagão da crise reformadora entra num Trem Fantasma. Em 1968, uma crise das ruas foi usada por uma conspiração palaciana para jogar o país na ditadura escancarada do AI-5. Recuando mais um pouco, chega-se a 1964. O marechal Castelo Branco achava que a crise colocara-o na Presidência para fazer grandes reformas. As fez, mas a anarquia militar que cavalgou legou ao país o desastroso governo de Costa e Silva. Viveu o suficiente para perceber a armação do colapso de sua ditadura envergonhada.

O caroço do golpe está no desejo de se dar o poder a quem não tem voto. De Gaulle mostrou que os tinha. Se a ideia é boa e se Dilma e Temer forem cassados, qualquer cidadão brasileiro pode se eleger presidente propondo sua plataforma reformista. Durante a campanha eleitoral de 1994, Fernando Henrique Cardoso elegeu-se propondo reformas, inclusive a da Previdência, e a fez, com o apoio da CUT.

O semiparlamentarismo daria mais poderes a um Congresso de 594 deputados e senadores. Deles, 99 têm processos à espera de julgamento do Supremo Tribunal Federal. São 500 os inquéritos em andamento, inclusive os que tratam dos atuais presidentes da Câmara e do Senado.

FOLHA DE SÃO PAULO, 13 DE MARÇO DE 2016

March 14, 2016

A CLASSE MÉDIA FOI ÀS RUAS PROTESTAR. MAS, E O QUE FICARAM EM CASA, ESTÃO SATISFEITOS ?


Vinicius Wu 

"Pesquisa DataFolha de hoje corrobora a análise que fiz sobre os protestos de ontem, publicada no site da Revista Fórum.

Reproduzo abaixo, com algumas correções:

1. Os protestos foram expressivos, obviamente, e não devem ser minimizados de forma alguma. Porém, não houve mudança no perfil social dos manifestantes. A base social do impeachment segue a mesma;

2. Esse dado é, sem dúvida alguma, relevante, afinal, tirando os trogloditas e os irracionais, a direita organizada tem consciência da necessidade de ampliar o espectro de apoio ao impeachment;

3. Os estrategistas da direita mais conscientes sabem que interromper a normalidade institucional apenas com base na mobilização da classe média é um risco.

4. Eles podem consumar o golpe mesmo assim? Podem! Mas, ninguém garante estabilidade ao próximo governo nesses termos. Essa é a questão chave em relação aos protestos.

5. Todos sabemos que o impeachment não será decidido, somente, nas ruas. As ruas falam sobre sua legitimidade. Por isso, importa sim analisar o perfil social dos manifestantes. E o perfil segue o mesmo de antes: é a classe média tradicional quem está indo às ruas. Em peso, naturalmente. Diversas pesquisas foram realizadas a respeito do perfil dos manifestantes. Não é necessário reproduzi-las aqui.

6. Portanto, a grande questão não é saber se os protestos foram maiores ou menores agora. A questão é se ampliaram socialmente. E isso, de fato, não ocorreu;

7. O povo pobre segue assistindo pela TV. O problema para o campo progressista e a esquerda é que não será possível mobiliza-los com a atual orientação de governo.

8. Lembremos da Venezuela. Chávez foi deposto e as favelas desceram em peso exigindo sua volta. Aqui não vai ocorrer isso… Por que o governo não deu motivos. Pelo menos, por enquanto.

9. Se não houver alguma sinalização em direção aos “não mobilizados”, tende a ser mantida a passividade exatamente no seio da base social que apoiou Lula e Dilma na última década. E aí, o que prevalecerá é a mobilização da Avenida Paulista. Mas, claro, nem tudo se resolve com base no humor das ruas e cores das camisas vestidas nas manifestações."

A SITUAÇÃO ESTÁ PROPÍCIA PARA UM AVENTUREIRO


MARINGONI

Hoje a direita levou.

Em manifestações absolutamente impressionantes, tivemos um repúdio ao PT, à esquerda, a Alckmin, a Aécio e... à política em geral.

Não é possível fazer nenhuma comparação com 1964, quando um governo nacional-reformista (algo que não temos hoje) foi derrotado por uma convergência de forças reacionárias, cuja ponta de lança era o poder das baionetas.

Agora há uma derrota da política institucional, ou pelo menos da política como praticada até aqui, sem um vitorioso definido. Repetindo, a direita levou, mas não é claro qual direita (como escreveu Milton Temer).

Escrevi outro dia que o pacto de classes responsável pela chegada de Lula ao palácio estava rompido. Eu colocava em dúvida se a institucionalidade construída após a promulgação da Carta de 1988 também estaria em xeque.

Embora estejamos no meio do torvelinho, pode ser que algo mais profundo esteja sendo revolvido. Pode ser que trinta anos de construção democrática estejam em questão. Os próximos meses dirão se isso é real ou não.

Não há uma liderança ou organização visível nas mobilizações, embora seja cristalino o papel que diversas organizações empresariais tiveram no financiamento dos atos.

Há uma fera à solta, um monstro que marcha para a direita, vitaminado por frustração, ressentimento, e intolerância.

Falta um condottiere, um líder, um Príncipe - no sentido de Maquiavel -, algo capaz de dar organicidade e conduzir essa formidável força social adiante, na senda reacionária que a embala.
O terreno está fértil para um aventureiro, para alguém de fora da política, para o homem (ou mulher) providencial. Um salvador da Pátria, desses que aparecem em tempos de crise para dar sentido aos fragmentos em movimento. Não costuma dar em boa coisa.

Quem será o personagem?

Sérgio Moro foi uma das poucas unanimidades para além da torrente de ataques unânimes à esquerda. Marina Silva esmera-se por aparentar estar fora do mundo político. Ciro Gomes se move para liderar algo acima dos partidos.

A situação objetiva pouco depende agora do personagem. Ele é que dependerá dela.

Por ora, dá apenas para repetir uma das máximas do o célebre filósofo, o Robô de Perdidos no Espaço, "Perigo! Perigo!"

As vaias a Aecio e o efeito Lacerda

Daniela Name
AS VAIAS PARA AÉCIO
E O "EFEITO LACERDA"
Não quero Aécio expulso das ruas. Também não desejo isso para Marta ou Alckmin, embora minhas fraquezas sintam algum prazer em ver isso acontecendo com uma oportunista do tamanho desta senhora e com um espancador de estudantes e favelados. Dito isso, respiro fundo e repito: não quero Aécio, Alckmin e Marta expulsos das ruas. O Brasil que eu desejo não é excludente.
O que vimos ontem talvez se aproxime de um "Efeito Lacerda"*. Carlos Lacerda e sua UDN planejaram um golpe a Getulio Vargas em 1953/1954, o acusando de um "mar de lama".  O presidente, como sabemos, cometeu suicídio e adiou por 10 anos uma virada de mesa.
Em 1963-1964, Lacerda voltou à carga, contando com o apoio da imprensa para desestruturar o governo de João Goulart. Insuflou a população insatisfeita e preocupada com a "ameaça comunista", que marchou pela família, com Deus pela liberdade. O título da Marcha soa ingênuo quando pensamos no que aconteceu depois, já que Lacerda também atiçou os grupos de extrema direita e as Forças Armadas. Deu no que deu: no dia 1 de abril daquele ano, perdíamos o país para uma
ditadura que durou duas décadas.
Mas Lacerda ficou de fora do poder. Criou o golpe, mas não usufruiu direta e fartamente de seus resultados. Mais tarde, chegou a ser fichado e perseguido pelo Dops e pelo DOI-COIDI, organismos de investigação e repressão dos militares - os mesmos que prenderam Lula como grevista no ABC e torturaram Dilma.
Não vivi este período, mas o estudei a fundo e minha família e seus amigos foram afetados por prisões e pela tortura. Tenho pensado, com muita tristeza, que os cardeais do PSDB e do PMDB podem experimentar um "Efeito Lacerda". Ontem as vaias para Aécio, Alckmin e Marta aconteceram simultâneas à ovação de Bolsonaro - devo lembrar que ele é do Exército? - e o aplauso para lideranças evangélicas ultraconservadoras.
Temo que esta direita tucana e peemedebista que vestiu a fantasia dos anti-corruptos - apoiada pela FIESP e pelos meios de comunicação -tenha alimentado grupos mais extremos. Chego a antever um estado fechado unindo a força ao fanatismo bíblico.
Acordei há pouco, depois de enfrentar e perder uma batalha contra a insônia nesta madrugada. Se o pior acontecer, fico me perguntando qual será a reação de meus amigos e conhecidos que apoiaram a desarticulação do governo Dilma e chegaram a ir às ruas lado a lado com os grupos que pediram a ditadura.
Vocês vão dormir em paz, queridos e queridas?

March 11, 2016

O plano obscuro

janio de freitas

 

Em condições normais, ou em país que já se livrou do autoritarismo, haveria uma investigação para esclarecer o que o juiz Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato intentavam de fato, quando mandaram recolher o ex-presidente Lula e o levaram para o Aeroporto de Congonhas. E apurar o que de fato se passou aí, entre a Aeronáutica, que zela por aquela área de segurança, e o contingente de policiais superarmados que pretenderam assenhorear-se de parte das instalações.

Mas quem poderia fazer uma investigação isenta? A Polícia Federal investigando a Polícia Federal, a Procuradoria Geral da República investigando procuradores da Lava Jato por ela designados?

É certo que não esteve distante uma reação da Aeronáutica, se os legionários da Lava Jato não contivessem seu ímpeto. Que ordens de Moro levavam? Um cameramen teve a boa ideia, depois do que viu e de algo que ouviu, de fotografar um jato estacionado, porta aberta, com um carro da PF ao lado, ambos bem próximos da sala de embarque VIP transformada em seção de interrogatório.

É compreensível, portanto, a proliferação das versões de que o Plano Moro era levar Lula preso para Curitiba. O que foi evitado, ou pela Aeronáutica, à falta de um mandado de prisão e contrária ao uso de dependências suas para tal operação; ou foi sustado por uma ordem curitibana de recuo, à vista dos tumultos de protesto logo iniciados em Congonhas mesmo, em São Bernardo, em São Paulo, no Rio, em Salvador. As versões variam, mas a convicção e os indícios do propósito frustrado não se alteram.
O grau de confiabilidade das informações prestadas a respeito da Operação Bandeirantes, perdão, operação 24 da Lava Jato, pôde ser constatado já no decorrer das ações. Nesse mesmo tempo, uma entrevista coletiva reunia, alegadamente para explicar os fatos, o procurador Carlos Eduardo dos Santos Lima e o delegado Igor de Paula, além de outros. (Operação Bandeirantes, ora veja, de onde me veio esta lembrança extemporânea da ditadura?)

Uma pergunta era inevitável. Quando os policiais chegaram à casa de Lula às 6h, repórteres já os esperavam. Quando chegaram com Lula ao aeroporto, repórteres os antecederam. "Houve vazamento?" O procurador, sempre prestativo para dizer qualquer coisa, fez uma confirmação enfática: "Vamos investigar esse vazamento agora!". Acreditamos, sim. E até colaboramos: só a cúpula da Lava Jato sabia dos dois destinos, logo, como sabe também o procurador, foi dali que saiu a informação –pela qual os jornalistas agradecem. Saiu dali como todas as outras, para exibição posterior do show de humilhações. E por isso, como os outros, mais esse vazamento não será apurado, porque é feito com origem conhecida e finalidade desejada pela Lava Jato.

A informação de que Lula dava um depoimento, naquela mesma hora, foi intercalada por uma contribuição, veloz e não pedida, do delegado Igor Romário de Paula: "Espontâneo!". Não era verdade e o delegado sabia. Mas não resistiu.

Figura inabalável, este expoente policial da Lava Jato. Difundiu insultos a Lula e a Dilma pelas redes de internet, durante a campanha eleitoral. Nada aconteceu. Dedicou-se a exaltar Aécio, também pela rede. Nada lhe aconteceu. Foi um dos envolvidos quando Alberto Youssef, já prisioneiro da Lava Jato, descobriu um gravador clandestino em sua cela na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Nada aconteceu, embora todos os policiais ali lotados devessem ser afastados de lá. E os envolvidos, afastados da própria PF.

Se descobrir por que a inoportuna lembrança do nome Operação Bandeirantes, e for útil, digo mais tarde.


FOLHA DE SÃO PAULO, 10 DE MARÇO DE 2016

March 10, 2016

Lava-Jato: Batalha final?



andré singer


Ao que parece o comando da Lava Jato, cujas formas decisórias ainda estão para ser esclarecidas, resolveu acelerar o passo e deflagrar o ato final da luta iniciada após a reeleição de 2014. A absurda condução coercitiva do ex-presidente Lula para depor na manhã de ontem tenta mobilizar e compactar, numa ofensiva final, os que desejam derrubar Dilma e extinguir o lulismo. Veremos nas próximas semanas se será vitoriosa.

A investigação a respeito do ex-presidente pode estar embasada em critérios técnicos, conforme o defendido pelo representante do Ministério Público (MP) no Paraná para explicar o que está em curso. Só o tempo dirá. Mas a justificativa a respeito da condução coercitiva não para em pé.

Disse o delegado da PF, encarregado de expor as razões da medida, que a mesma foi tomada com vistas a preservar a segurança do próprio Lula. Mas é o contrário. Os confrontos em São Paulo teriam sido evitados se o ex-mandatário fosse convidado a depor com toda a tranquilidade em Brasília, como o fez de outras vezes. Afirmar que se procurava preservar a integridade do depoente não faz o menor sentido.

O juiz Sergio Moro certamente sabe o que se produziria se autorizasse o que autorizou. Era óbvio que haveria repercussão midiática nacional e internacional equivalente à da prisão de uma celebridade. Era esse efeito imagético que buscava.

Com todas as atenções voltadas para o factoide, houve difusão extraordinária das acusações formuladas pelo MP, associando Lula de maneira central ao escândalo da Petrobras. Fazê-lo um dia depois de, com o mesmo sentido, os meios de comunicação serem tomados pela suposta delação de Delcídio do Amaral criou massacre noticioso, o qual açula os ânimos antipetistas.

Na outra frente do tabuleiro, numa vingança clássica, o ex-líder do governo ressuscitou o impeachment. Ao afirmar que a presidente tentou interferir na Lava Jato, abre a porta para a oposição acusá-la de obstrução da Justiça. Até aqui era flagrante a inconsistência dos crimes de responsabilidade atribuídos a Dilma.

Por enquanto não há prova de que a acusação proceda. Por mais credibilidade que tivesse o delator, pelo cargo antes ocupado, trata-se só de sua palavra. Talvez por isso o esforço do Partido da Justiça (PJ), via João Santana, obter a incriminação das contas eleitorais.

O desfecho desta que parece ser a mãe de todas as batalhas dependerá de dois fatores. De um lado, a capacidade de o PJ dar materialidade às imputações lançadas contra Dilma. De outro, da temperatura das ruas, aquecidas pelas manifestações programadas pela direita e pela disposição de luta demonstrada por Lula ao se livrar da injustificada coerção policial.

FOLHA DE SÃO PAULO, 5 DE MARÇO DE 2016 

March 7, 2016

Palmas para ela

Não usa salto alto porque tem pés complicados, nem vestidos de gala porque ficaria ridícula. Aliás, não usa vestidos, ponto

Dorrit Harazim

 A figurinista inglesa Jenny Beavan não é nenhuma sílfide. Chegou aos 65 anos assumindo cada marca do passar do tempo, que não lhe foi particularmente generoso no quesito físico. Em compensação, essa filha de músicos clássicos foi brindada com uma soma de talentos de fazer inveja.
Desde que se formou pela Central School of Art and Design de Londres e foi sequestrada pela indústria cinematográfica para criar figurinos de qualquer época, Jenny acumula um portfólio de mais de 50 cobiçados prêmios. Das dez indicações ao Oscar que recebeu ao longo da carreira, já subiu ao palco duas vezes para apanhar a estatueta.

A primeira foi em 1987, pelos figurinos vitorianos criados para “Uma janela para o amor”, filme baseado no romance homônimo de E.M. Forster. A segunda foi na cerimônia de domingo passado, pela indumentária pós-apocalíptica punk que inventou para os personagens de “Mad Max — Estrada de fúria”, o grande vencedor desse 88º Oscar.

Foi ao levantar do assento em meio ao mar de famosos acomodados no Dolby Theater de Los Angeles, e caminhar até o palco para receber o troféu, que Jenny Beavan revelou o tamanho de sua personalidade. Mas revelou também, graças à internet, que permite rever qualquer cena à exaustão, o tamanho da mediocridade dessa distinta plateia — sobretudo da ala masculina.

Vale a pena recapitular para quem não acompanhou a transmissão do evento ou não percebeu a cena fugaz. Ao contrário do Festival de Cannes, que exige salto alto para mulheres, o convite do Oscar especifica apenas black-tie como traje sugerido. Em 2010, quando foi indicada pelos figurinos de “O discurso do rei”, vencedor de sete prêmios Bafta britânicos e quatro Oscars, Jenny se apresentou de jaqueta preta chinesa e calça larga.

Desta vez, ela decidira fazer algo mais divertido, conforme contou mais tarde. Comprou uma jaqueta preta de couro fake por 42 libras esterlinas (cerca de R$ 224) na loja de departamento Marks & Spencer, a mais popular da Inglaterra. Figurinista que é, deu-lhe um trato mandando bordar nas costas uma caveira envolta em chamas — com cristais Swarovski. Para acompanhar, calça comprida preta larga, botas de motoqueiro, uma echarpe listrada e vários adereços fantasia.

E foi assim, com a vasta cabeleira grisalha solta, maquiagem mínima, uma única unha pintada de prateado e passadas confortáveis sustentando o corpanzil pesado que Jenny atravessou o corredor para subir ao palco.

Pelo menos no clipe que se tornou viral, ela parece sorrir. Um sorriso malicioso em meio a um esquisito silêncio no engalanado salão.

Ao contrário das palmas que sempre acompanham o anúncio do vencedor de cada nova categoria, no caso da figurinista os aplausos só tomaram corpo quando ela chegou ao palco para receber o troféu. Durante a travessia ocorreu algo singular.

Enquanto avançava, ela ia sendo examinada em silencio da cabeça aos pés pelos cavalheiros de black-tie, que permaneciam de semblante sério e visivelmente desaprovador. O premiado diretor mexicano Alejandro G. Iñárritu, criticado por sequer descruzar os braços à passagem da vencedora, foi apenas um entre os de nariz empinado. No fundo, ele apenas teve o azar de estar sentado na linha de foco da câmera que registrava a cena e por isso achou que devia se explicar.

Algumas damas da plateia, mais caridosas talvez por não verem em Jenny uma concorrente, incentivaram-na com acenos. Mas também se abstiveram de aplaudi-la na passagem.

A premiada acolheu de bom humor a inevitável pergunta sobre seu guarda-roupa na entrevista coletiva que todo oscarizado concede após a cerimônia e ainda brindou os repórteres dando uma pirueta para que apreciassem a caveira Swarovski de sua jaqueta.

Explicou que não usa salto alto porque tem pés complicados, nem vestidos de gala porque ficaria ridícula. Aliás, não usa vestidos, ponto. “E lamento informar, acrescentou, “gosto de me sentir confortável. Então escolhi essas peças como homenagem a ‘Mad Max’. Aliás, acho que estou bem vestida, até este broche coloquei — é fantasia, mas enfeita”.

Poucas semanas antes, ao receber o prestigioso premio Bafta em Londres com a mesma jaqueta (ainda sem cristais), camiseta e outra echarpe, Jenny já havia levado uma cutucada deselegante do mestre de cerimônias Stephen Fry. “Só mesmo uma das maiores figurinistas do cinema é capaz de vir à entrega dos prêmios vestida como uma mendiga”, disse Fry a título de apresentação. Ninguém achou graça.
“Não tenho interesse em roupas em geral. Minha paixão é criar personagens através de roupas, só isso”, explica essa mágica que adora acordar de madrugada para pesquisar textura de tecidos, traços de figuras históricas (só Winston Churchills fictícios ela já vestiu meia dúzia) e miudezas do cotidiano de determinado período.

E já que estamos em semana de Dia da Mulher, fica a recomendação final do mulherão que encara qualquer tapete vermelho com pé no chão: “Você não precisa parecer uma supermodelo para ter sucesso. Se pudermos lembrar disso, seria uma coisa ótima. É muito bom se sentir bem, porque então você pode fazer qualquer coisa”. Estava feliz porque a filha tinha achado a maior graça no seu figurino black-tie.

O GLOBO, 6 DE MARÇO DE 2016

Isto foi



janio de freitas

 

Nos seus dois anos de ação que se completam neste março, o juiz, os procuradores e os policiais da Lava Jato vieram em crescendo incessante nos excessos de poder, mas o ambiente em que esbanjaram arbitrariedade não é mais o mesmo. O exagero de prepotência faz emergirem reações em ao menos três níveis.

O que se passou de quinta (3) para a sexta (4) passadas não foram ocorrências desconectadas. Foram fatos combinados para eclodirem todos de um dia para o outro, com preparação estonteante no primeiro e o festival de ações no segundo. O texto preparado na Lava Jato para entrega ao Supremo Tribunal Federal, como compromisso de delação de Delcídio do Amaral, está pronto desde dezembro. À espera de determinada ocasião.

Por que a intermediação para o momento especial foi da "IstoÉ", desprezada pela Lava Jato nos dois anos de sua associação com "Veja" e "Época"? É que estas duas, na corrida para ver qual acusa e denuncia mais, costumam antecipar na internet os seus bombardeios. A Lava Jato desejava que a alegada delação de Delcídio só fosse divulgada na quinta-feira, véspera das ações planejadas. A primeira etapa funcionou sem falhas, até para "IstoÉ" lembrar-se de si mesma.

Ainda no começo da noite de quinta, Ricardo Boechat deu com precedência e correção, no Jornal da Band, a íntegra da nota em que Delcídio negou confirmação ao "conteúdo da reportagem de IstoÉ" e negou "reconhecer a autenticidade dos documentos acostados ao texto". Mas a conduta comum aos jornais, TV e rádios foi tratar como verdadeira a alegada delação de Delcídio. Nos dois jornais mais relevantes, o desmentido só foi referido na 21ª linha das 31 sob a grande manchete ("O Globo": "Embora o senador diga que não confirma a reportagem", e muda o assunto). Nas 54 linhas sob a grande manchete na edição nacional da Folha, nenhuma referência ao desmentido, no entanto citado em parte com destaque no interior.

Situação curiosa: o Delcídio tratado como parlapatão, pelo que disse ao Cerveró filho, merece crédito absoluto quando incriminador de Dilma e Lula, e volta a ser declarante desprezível quando nega as incriminações. Uma oscilação que pode ser política ou ter qualquer outra origem, mas jornalística não é. Em tempo: o filho de Cerveró foi mandado para o exterior.

As ações da sexta-feira quase santa foram sintetizadas, não por acaso, no título do artigo, naquele dia mesmo, de um dos irmãos em fé de vários integrantes da Lava Jato: "Destituição de Dilma é missão cristã". Do pastor evangélico Wilton Acosta, presidente do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política. Adequado texto de fundo para a chegada da Polícia Federal à moradia de Lula, levando-o; e para as invasões do Instituto Lula e do sítio em Atibaia. Com base em razão assim exposta uma semana antes pelo procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, ao falar da obra no sítio: "Eu desconfio" (de relação entre Lula e empreiteiras). Mas procurador e policial que desconfia não vão para os jornais. Vão trabalhar. Para esclarecer sua desconfiança e dar ao país informações decentes.

Em São Paulo, em São Bernardo, no Rio, em Salvador, pelo menos, houve amostras eloquentes de que os ânimos da militância dos mais sofridos está próximo do ponto de descontrole. Um aviso à Lava Jato de que sua "missão cristã" não pode continuar tão mais missão do que cristã. Em paralelo, o pronunciamento de Lula, revivendo o extraordinário mitingueiro, não apenas deixou pasmos os que esperavam vê-lo demolido, a ponto de que também a Globo transmitiu-o ao vivo. Calmo, desafiador, o pronunciamento abriu a única perspectiva conhecida de restauração do PT, com Lula em campo pelo país afora, e já enfrentando os que pretendem extinguir os dois.

O ministro Marco Aurélio de Mello, ele quase sempre, convocou diante das atitudes de Sergio Moro: "Precisamos colocar os pingos nos is. (...) Amanhã constroem um paredão na praça dos Três Poderes". Apontava a ilegalidade da decisão de Moro referente a Lula, e foi forte: "paredão" remeteu ao "paredón" dos fuzilamentos nos primórdios da revolução cubana. Considera que Moro age por critério seu, não pelos da legislação. O resultado são "atos de força". E "isso implica retrocesso, não avanço". Marco Aurélio não falou só por falar.

A megaoperação resultou em mega-advertência à Lava Jato.

FOLHA DE SÃO PAULO, 6 DE MARÇO DE 20Q6 

March 6, 2016

O sonho esmorece, em um dia triste


Ancelmo Gois

Lula, acho, colhe o que plantou. O que ele fez é feio, embora não seja novo aqui na Terra. Ele aceitou favores pessoais milionários de empreiteiras. Não há almoço grátis, ainda mais com essa turma do cimento. A conta, pode crer, foi incluída no preço de uma obra pretérita ou futura. Foi o meu, o seu, o nosso dinheiro que bancou a reforma do apartamento de Guarujá e do sítio de Atibaia.

Insisto: muitos dos que o acusam já fizeram a mesma safadeza. Mas a promiscuidade dos outros não o absolve. Pelo contrário, acho. Frustra corações e mentes de milhões de brasileiros, notadamente dos mais jovens, que acreditaram num projeto generoso e socialmente inclusivo do PT. E frustra, principalmente, quem acreditou neste retirante nordestino que venceu desafios gigantes e chegou a comandar a sétima maior economia do planeta.

Ao chegar ao poder, em 2003, Lula encantou o Brasil e o mundo ao manter a política econômica do governo anterior e, com a casa arrumada por FH, acelerar as políticas sociais. Fez isto sem deixar de ser o Lula de sempre. Aquela foto dele carregando um isopor na base naval de Aratu, na Bahia, ilustra o que quero dizer. E isto num país em que as pessoas, quando ficam ricas, passam a jogar tênis e golfe (nada contra, mas estes não são os esportes preferidos dos jovens do sertão pernambucano).

O encanto com Lula fez até esquecer defeitos velhos. Ele não poderia ter aceitado a Bolsa Ditadura por ter ficado 31 dias na prisão, em 1979. Até para evitar ouvir de Millôr “Que dizer que aquilo não era ideologia, era investimento”.

Também não deveria ter deixado dona Marisa, assim que chegou ao Palácio do Planalto, fazer um canteiro de flores imitando a estrela do PT.

Aquele é um imóvel público, e não de um partido. Foi o ovo da serpente, que sinalizou em seguida o aparelhamento da máquina pública pelo PT e aliados.

Ainda assim, acho, ontem foi um dia triste. Se o sonho não morreu, esmoreceu. Não sei o que pensa hoje FH. Mas, em julho, em entrevista à revista alemã “Capital”, o tucano, mesmo achando impossível que Lula não soubesse de nada, ponderou: “Lula é um líder popular. Não se deve quebrar esse símbolo, mesmo que isso fosse vantajoso para o meu próprio partido.”

O GLOBO, 5 DE MARÇO DE 2016 

Cada vez mais próximos de Hitler



vladimir safatle

 

Aqueles que estão a debater sobre a possibilidade ou não de publicar livros de Hitler deveriam voltar sua atenção para um fenômeno que tem modificado radicalmente a natureza do que chamamos até agora de sociedades democráticas.

Do ponto de vista jurídico, o nazifascismo tinha dois pilares fundamentais. O primeiro era a transformação do estado de emergência em modo normal de governo. O segundo era a possibilidade de espoliar legalmente sujeitos de toda sua condição de cidadãos.

Certas constituições preveem a decretação do estado de emergência em situações de guerra, insegurança nacional e catástrofes de várias naturezas. Sob estado de emergência, o governo pode suspender garantias legais, impor censura e tomar decisões por meios que não seriam aceitáveis em situações normais. Assim, o governo assume claramente a posição de poder soberano que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei. Dentro, porque é o seu fundamento. Fora, porque pode suspendê-la.
Por exemplo, a constituição alemã da República de Weimar tinha o famoso artigo 48, que dava ao presidente do Reich poderes para decretar o estado de emergência em situações nas quais a "segurança e a ordem" estavam seriamente em perigo.

Assim, quando Hitler chegou ao poder, bastou atear fogo no Reichstag, afirmar que o país estava em estado de grave insegurança e governar a Alemanha impondo um estado de emergência que durou 12 anos. Ou seja, e isso deveria nos fazer pensar muito, a constituição da Alemanha nazista continuava sendo a constituição democrática da República de Weimar.

Nesse sentido, Hitler não precisou fazer como nossos militares, que tiveram de dar um golpe de Estado e escrever uma nova constituição em 1966. Ele apenas se serviu das zonas de sombra da democracia. Do ponto de vista meramente jurídico, o Estado nazista era totalmente legal, e este era seu dado mais aterrador.

Bem, nesta semana a Assembleia Nacional francesa aprovou a primeira etapa para a "constitucionalização do Estado de emergência".

Depois dos ataques terroristas do ano passado e da situação de "grave insegurança", seu governo apresentou um série de medidas por meio das quais o Estado procura se aproveitar da situação para criar uma suspensão legal da lei por tempo indeterminado. Seu primeiro-ministro já afirmou claramente que o estado de emergência deveria durar até que o Estado Islâmico deixasse de ser uma ameaça.

Mas e se demorar 12 anos para "destruir" o Estado Islâmico? E se depois do EI vier outro grupo, da mesma forma que os próprios vieram depois da Al Qaeda? Não estaríamos atualmente a assistir a uma espécie de autodestruição das democracias parlamentares?

Vejamos a outra lei que foi aprovada. Ela permite ao Estado retirar a nacionalidade de alguém que "cometeu um crime ou um atentado grave à vida da nação". A princípio, a redação da lei deixava claro que o alvo eram os cidadãos binacionais, ou seja, majoritariamente aqueles que vieram da imigração árabe.

Agora, o alvo está pressuposto. Toda a discussão da lei foi feita a partir dessa distinção entre cidadãos que podem perder sua nacionalidade e outros que não perderão. Não por outra razão, seus opositores recordam que o regime nazista criou leis semelhantes para lembrar que os judeus não eram cidadãos completos e que eles poderiam simplesmente perder sua cidadania.

Uma lei dessa natureza (que está também a ser discutida em outros países, como a Bélgica) é simplesmente criminosa e joga uma pá de cal no resto de democracia que as sociedades liberais eram obrigadas a suportar. Primeiro, ela dá ao Estado o direito de jogar seus cidadãos em uma zona de não direito, desde que o aparato estatal compreenda que houve um "grave atentado contra a vida da nação".
Aproveitando-se da comoção nacional por um atentado brutal, o Estado francês propõe um lei que não terá efeito algum para lutar contra as causas da insegurança, ou afinal alguém acredita que uma pessoa disposta a fazer um ataque terrorista iria se deixar tocar pela possibilidade de perder sua nacionalidade?

Na verdade, a lei serve apenas para mostrar aos filhos da imigração que eles nunca foram vistos como cidadãos de fato, já que eles podem simplesmente deixar de serem franceses. Ou seja, ela serve para aprofundar o sentimento de exclusão, preconceito e assimetria que é verdadeiro elemento que alimenta radicalizações.

Desta forma, cada vez mais nossas sociedades se assemelham àquilo que elas pareciam querer combater. Assim, a democracia parlamentar será engolida pelas zonas de sombra que ela mesma criou.

FOLHA DE SÃO PAULO, 12 DE FEVEREIRO DE 2016

March 5, 2016

G1 - Após 5 meses, usuários reprovam racionalização de ônibus no Rio



 Rachel faz baldeação para tentar chegar no Grajaú (Foto: Matheus Rodrigues/ G1)






"A bióloga Diana Levacov, de 50 anos, mora em Copacabana, na Zona Sul, e trabalha na Praça Mauá, no Centro. Ela tinha quatro linhas de ônibus como opção para chegar até o trabalho. Com as alterações, apenas uma linha passou a atender suas necessidades e ainda é preciso pegar uma segunda condução para desembarcar no destino final. Em entrevista, ela afirmou que a racionalização é uma “experiência bizarra” com os cariocas.

“Se não tivesse trânsito, eu levava uns 25 minutos. É uma viagem curta, eu não vejo motivo para fazer baldeação. Agora, com a racionalização, não tem nenhum ônibus que vá direto. Só o ‘frescão’ que ainda existe, mas o bilhete único não cobre. É uma falta de respeito, parece uma maldade, uma experiência bizarra que estão fazendo com a gente. As pessoas têm que ficar muito tempo nos pontos de ônibus, expostas a assaltos e a perigo. Não conheço ninguém que esteja satisfeito com essa avalanche de mudanças”, afirmou.


A “implicância” com a baldeação se torna ainda maior quando se tem que trocar de transporte em uma área considerada insegura"


leia a reportagem de Matheus Rodrigues

G1 - Após 5 meses, usuários reprovam racionalização de ônibus no Rio - notícias em Rio de Janeiro

G1 - Após 5 meses, usuários reprovam racionalização de ônibus no Rio



 Rachel faz baldeação para tentar chegar no Grajaú (Foto: Matheus Rodrigues/ G1)






"A bióloga Diana Levacov, de 50 anos, mora em Copacabana, na Zona Sul, e trabalha na Praça Mauá, no Centro. Ela tinha quatro linhas de ônibus como opção para chegar até o trabalho. Com as alterações, apenas uma linha passou a atender suas necessidades e ainda é preciso pegar uma segunda condução para desembarcar no destino final. Em entrevista, ela afirmou que a racionalização é uma “experiência bizarra” com os cariocas.

“Se não tivesse trânsito, eu levava uns 25 minutos. É uma viagem curta, eu não vejo motivo para fazer baldeação. Agora, com a racionalização, não tem nenhum ônibus que vá direto. Só o ‘frescão’ que ainda existe, mas o bilhete único não cobre. É uma falta de respeito, parece uma maldade, uma experiência bizarra que estão fazendo com a gente. As pessoas têm que ficar muito tempo nos pontos de ônibus, expostas a assaltos e a perigo. Não conheço ninguém que esteja satisfeito com essa avalanche de mudanças”, afirmou.


A “implicância” com a baldeação se torna ainda maior quando se tem que trocar de transporte em uma área considerada insegura"


leia a reportagem de Matheus Rodrigues

G1 - Após 5 meses, usuários reprovam racionalização de ônibus no Rio - notícias em Rio de Janeiro

March 4, 2016

Sobre o jornalismo e as capas que “contam tudo”


Luis Costa Pinto

A revista Istoé antecipou sua edição do próximo fim de semana para hoje, quinta-feira.

Antes de analisar qualquer coisa, o ato de antecipar a circulação da edição impressa só mostra quão difícil é pensar as publicações nos dias de hoje.

Modernos fossem, os editores de Istoé podiam ter arrebentado numa edição eletrônica e podiam resguardar a outrora preciosa edição impressa para oferecer a seus leitores uma cobertura espetacular sobre os desdobramentos da crise. Afinal, revistas nasceram para analisar em profundidade os cenários e para explicar o porquê dos fatos.

Mas esse foi só um desacerto editorial. Deixemo-lo de lado.

Na capa da edição, o título ‘Delcídio Conta Tudo’ e uma foto do senador do PT do Mato Grosso do Sul com ar soturno e a cabeça levemente inclinada para baixo.

A ambição, inconfessa, contudo evidente e descarada, é remeter os mais velhos à histórica capa de Veja ‘Pedro Collor Conta Tudo’, de autoria central minha, mas fruto de um amplo e espetacular trabalho de equipe – repórteres, editores, correspondentes e diretores – num formato de redação e de publicação que já não existe mais. Não existe. Mimetizar a força de uma capa por similaridades gráficas é mais que equívoco: é má fé.

O texto de Istoé relata o acesso que a repórter teve a um texto que seria parte de uma delação premiada, não homologada, do senador Delcídio Amaral. No rol de denúncias, supostos fatos que serão graves se forem verdadeiros.

Alguns deles:

1- A presidente da República e o ministro da Justiça teriam feito gestões junto ao presidente do Supremo Tribunal Federal numa reunião extrapauta, no Porto, para que Ricardo Lewandowiski ajudasse num processo de esvaziamento da Operação Lava Jato.

2- A presidente da República teria pedido ao líder do Governo no Senado, o próprio Delcídio, para que ele confirmasse com um futuro ministro do Superior Tribunal de Justiça se ele concederia habeas corpus aos presidentes de duas empreiteiras – Odebrecht e Andrade Gutierrez – tão logo assumisse a vaga no STJ. E que o presidente do STJ teria auxiliado nessas gestões.

3- Que Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, soubera com todos os detalhes do passo a passo da compra da refinaria da Petrobras em Pasadena (EUA).

4- Que Dilma Rousseff, então ministra de Minas e Energia e da Casa Civil, havia articulado com a CPI dos Bingos para que seu nome não fosse tratado lá dentro.

Não vale descer ao rol quilométrico de versões elencadas no papelório divulgado por Istoé, mas:

1- Delcídio Amaral nega a delação. Seus advogados, idem. Um dos advogados de Amaral é ex-presidente do STJ, Gilson Dipp, operador do Direito que construiu sólida reputação em Brasília. Eles não foram procurados antes da publicação do texto. Sequer para confirmar ou negar a existência da delação – ou para ajudar a melhorar a “apuração”. Por que?

2- O presidente do STF, Ricardo Lewandowiski, em que pese ter sido “elogiado” na edição de Istoé, não foi procurado antes da divulgação da revista. Por que? Deveria ter sido procurado, até para dar detalhes da conversa ocorrida no Porto, em Portugal. Lewandowiski negou que tenha ocorrido abordagem não-republicana na conversa entre ele, a presidente e José Eduardo Martins Cardozo.

3- O presidente do STJ também não foi procurado por repórteres de Istoé para dizer o que houve naquelas supostas gestões – para melhorar, para tentar derrubar a “apuração”. E até mesmo as reações dele já seriam notícia, em si, numa eventual reportagem.

4- O ministro Marcelo Navarro nega ter existido a conversa citada na suposta delação também negada. E também não foi procurado por repórteres de Istoé. Por que? Mesmo que Navarro negasse, havia reportagem se fato houvesse.

5- Regressar à compra de Pasadena, dizendo que Dilma sabia o que se passaria na reunião que levou à efetivação da compra da refinaria nos EUA, é chover no molhado numa obra já feita: a presidente já dissera, em outro momento, que soubera da compra por relatório preliminar – mas que não o lera antes da reunião do Conselho da Petrobras. E isso não é crime, é notícia velha. Por que não citar, em um parágrafo, que ela sabia o que já dissera que sabia?

6- A CPI dos Bingos não tinha rigorosamente nada a ver com Dilma. Nada. Foi ela, a CPI, a responsável por levar à queda de José Dirceu do ministério da Casa Civil. E Dilma assumiu o posto dele. E naquele momento ela não era nada, não era ninguém, no horizonte político nacional. Lula tirou o nome de Dilma da cartola depois da posse para o segundo mandato – e ali a CPI dos Bingos já não existia mais.

7- De resto, no texto da revista há dois parágrafos remetendo à renovação da tese do impeachment que não nasceram da pena jornalística. Saíram de uma mente policialesca. São indícios de digitais.
De volta ao jornalismo e ao trabalho que dá apurar reportagens que fazem, fizeram ou podem fazer História – e para desautorizar a remissão de Istoé à capa “Pedro Collor Conta Tudo”, de Veja:
A entrevista de Pedro Collor a Veja não foi nem o início, nem a bala de prata da crise política que levou ao desfecho do primeiro impeachment da História. Foi apenas o curso de um processo que se iniciara havia mais de um ano no cultivo de uma fonte, no trabalho de convencimento para que falasse o que sabia, na demonstração de independência do veículo (no caso, a revista) em relação ao governo com a publicação de reportagens anteriores que eram evidentemente ruins para o presidente de então (o do irmão de Pedro Collor). Mas no curso daquele processo uma vasta equipe de profissionais da revista colocou a apuração à frente de tudo – tínhamos certeza de que os rios de fatos correriam para o mar da boa apuração. E se deu assim, e não só na Veja. No meio do processo outras publicações deram furos essenciais para o processo – inclusive Istoé, com a revelação do motorista Eriberto França.

A entrevista de Pedro Collor a Veja não decorreu da eleição de uma publicação, pelo entrevistado, em detrimento das outras publicações. Longe disso: comecei a me aproximar de Pedro Collor em agosto de 1990, quando entrei em Veja, por orientação e sugestão de editores da revista. Minha área de responsabilidade ia de Alagoas ao Piauí, com base no Recife, e Pedro era a principal fonte próxima do poder federal nessa área. Por mais de um ano mantive uma rotina de ir a Maceió quase semanalmente com um único objetivo: consolidar a fonte. Isso era estratégia de jornalista, e empresas jornalísticas ousavam fazer esses investimentos.

Cultivar fontes é uma arte. É uma costura. Eu era um aprendiz naquele ofício, em 1990, mas vinha de uma escola em que aprendíamos a amadurecer à base de carbureto e a publicação para a qual trabalhava me dava todas as ferramentas para fazê-lo.

A Polícia Federal daquela época existia para servir à presidência – era um desvio colateral cultivado, ainda, pela ditadura militar da qual havíamos saído apenas em 1985.

O Ministério Público engatinhava – tinha sido criado pela Constituição de 1988 e fora montado a partir de uma costela do Palácio do Planalto com procuradores egressos de uma carreira em que investigar não era hábito.

A entrevista de Pedro Collor à Veja não foi a primeira reportagem do processo que incendiou o país e levou à cassação do presidente. Foi a quarta reportagem – e depois dela se deu todo um processo político e investigativo, no Congresso e por meio das instituições, catalisado por movimentos populares, que conferiu legitimidade a tudo.

Antes da capa ‘Pedro Collor Conta Tudo’ a Veja havia publicado uma reportagem com o próprio irmão do presidente sugerindo acusações mais graves, mas voltando atrás em muitas delas. A notícia era o desentendimento dentro da família presidencial. Algumas semanas depois, escorado em documentos passados por Pedro Collor, mas fruto de apurações também, de confirmações, e de uma antológica conversa que mantive com Paulo César Farias na suíte que ele ocupava num hotel de luxo em São Paulo (em que ele negou todos os papeis que tínhamos em mãos, mas em que ouviu do diretor de redação no ato que iríamos publicar a reportagem porque sabíamos que ele mentia em razão do comportamento que adotava na conversa interpessoal), fizemos a primeira grande reportagem sobre o tema. E não havia entrevista de Pedro até ali. Na semana seguinte, e com 40% da equipe de Veja mobilizada para apurar, confirmar, desmentir e melhorar as informações que obtínhamos na revista, Veja publicou a capa com o imposto de renda de PC mostrando que ele enriquecera no governo do amigo Collor. Naquele momento já tínhamos a entrevista com Pedro – mas ela não estava gravada e a direção de Veja se recusava a dar uma entrevista daquele teor contra o presidente sem gravação. Recebi a missão de voltar a Pedro Collor e a seguir insistindo com que gravasse, o que só consegui na semana seguinte. Ainda assim, as principais acusações de Pedro ao irmão Fernando Collor forma publicadas com apurações e outras versões – as oficiais – ao lado. Havia apuração. E não havia nem MP nem PF entregando papelório à noite e participando do processo – fazendo com que a apuração se escorasse em vazamentos. Havia apuração.

Por que um veículo de comunicação sai correndo para publicar, sem ouvir outros lados, o que recebe na calada da noite?

É claro que erros são cometidos no calor de um processo de apuração. Somos todos passíveis de errar. Somos passíveis, também, de ver jornalistas sendo usados em meio a processos políticos. Frank Underwood, em House of Cards, retrata isso bem quando se torna amante de uma das principais repórteres de Washington. Ali é ficção, mas baseada em fatos reais. Quando isso ocorre, diz-se que um veículo, ou um repórter, está sendo “operado” pelo detentor do “fato” ou do suposto fato. Será que isso ocorreu?

Por fim, o mais estranho em todo esse processo foi a eleição de Istoé para ser o veículo da vez. A revista é a terceira em circulação no país e tem importância secundária, hoje, no processo político. A ressurreição da publicação – mesmo que num fatídico beijo da morte caso tudo se prove uma barriga monumental – se dá justo na véspera da troca de comando em Veja (na próxima segunda-feira um jornalista de carreira equilibrada, de texto primoroso e de responsabilidade ética assume a direção de redação da publicação da Abril, e isso suscitou um debate paralelo nas redes sociais em relação a um suposto e improvável “enquadramento” de Veja pelo Governo). Por que os vazadores da suposta delação negada de Delcídio Amaral elegeram Istoé para entregar um papelório potencialmente bombástico?

Para reflexão: para alguns, “perder” a adesão de Veja à tese cataclísmica do impeachment seria como a derrota do general Von Hommel no norte da África por parte do Exército Nazista. Sem o norte da África os delírios totalitários de Hitler foram se enfraquecendo, a demora em dobrar a União Soviética na frente russa pesou e as duas derrotas juntas auxiliaram ao cenário conjuntural que permitiu aos aliados desembarcarem na Normandia. A analogia pode ser transposta para a cena política do Brasil de hoje. E o regresso (até aqui, imaginado, possível, provável) de Veja a uma linha mais sensata e fundada em apurações de fato, pode estar sendo lido por alguém como a derrota das divisões Panzer no Saara. Será que o Governo ainda é capaz de reunir três nomes de Estado numa Conferência de Casablanca? Em meio à guerra, Roosevelt, Stalin e Churchill, sob a assessoria de De Gaulle, reuniram-se no Marrocos. E nós? Temos ainda uma Casablanca?

Em meio a tudo isso, houve quem tentasse desmontar o texto de Istoé divulgando versões canalhas e sexistas sobre a vida pessoal da repórter que o assina. Desespero, calhordice. Ausência de lógica e de fatos se rebate com a exposição dos... fatos! Ao longo dos anos afastei-me das redações, sobretudo da Veja, do jornalismo e até do dia a dia do noticiário político de Brasília. Mas, ao ver a tentativa de mimetização farsesca da capa de Veja de 25 de maio de 1992 com essa da Istoé de hoje, senti-me obrigado a expor as diferenças entre um mundo e outro, entre um Brasil e outro, entre uma conjuntura e outra, para animar o debate.