May 27, 2016

Falsa ruptura


PAULO SÉRGIO PINHEIRO 
Os primeiros dias do governo interino não deixaram dúvidas -seus objetivos se limitam a acalmar os mercados e a garantir governança com uma sólida base legislativa. Aos opositores, a total indiferença.
Quando os protestos, mesmo pacíficos, chegam perto dos atuais donos do poder, sobram cacetadas, jatos de água e gás por tropas de choque da Polícia Militar.

As gravações do agora ex-ministro Romero Jucá reveladas pela Folha expõem uma conspiração para a tomada do poder, revelando como os mais baixos recônditos do sistema político brasileiro prosseguem firmes em sua esperança de sufocar a consolidação do Estado de Direito e da democracia no país.

O impeachment surge como um sinistro pacto a portas fechadas urdido pelas forças mais retrógradas, desesperadas para manter seu poder. Uma aberração institucional que custará muito caro ao Brasil.

A reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, foi um acidente inaceitável para o establishment econômico e político brasileiro. Dilma era o risco permanente. Seja risco aos mercados, que sabiam que sua única base real estava à esquerda, seja o risco aos corruptos de sempre, que não sentiam ter um escudo seguro.

Entregando a cabeça de Dilma, acreditavam que tudo voltaria ao normal: ordem e progresso, como nos bons tempos da ditadura militar.

O demorado e bizarro julgamento das pedaladas fiscais nos obriga a discutir uma patética infinidade de detalhes num processo que já estava decidido. Não por qualquer sombra de análise jurídica, mas nas idas e vindas dos mais dignos representantes de nossa elite ao Palácio do Jaburu, residência ocupada pelo presidente interino Michel Temer.

A ausência de mulheres no ministério do governo interino é o exemplo maior do grotesco descolamento da realidade do grupo que agora nos governa. O rebaixamento dos ministérios de Ciência e Tecnologia e Direitos Humanos foi também um caminho totalmente natural para um grupo que viveu e floresceu eternamente na sombra dos gabinetes, a léguas de distância do pensamento crítico e da sociedade civil organizada.

Para agregar um caráter ainda mais sinistro, a administração interina conseguiu também nomear para a secretaria de Segurança Institucional o general do Exército Sérgio Etchegoyen, justamente o único oficial de alta patente que, abertamente, confrontou o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Ao fim e ao cabo, a chegada do PMDB ao poder representa a tentativa de sobrevivência da base mais profunda que deu sustentação à nossa transição democrática lenta, gradual e, como agora vemos, insegura.

A grande vítima da conspiração reinante é, ironicamente, a Constituição de 1988 que o presidente interino disse defender. Vários projetos de lei já estão no Congresso para desmontar os direitos conquistados na esteira da constitucionalidade.

Espero que rapidamente acordemos desse transe e novas eleições sejam promovidas para reestabelecer um mínimo de espaço para nossa tão desmoralizada República.

E que as futuras gerações estudem com afinco os infinitos erros da minha geração, que lutou contra a ditadura e se iludiu tantas vezes com aparentes mudanças que, na verdade, jamais lograram transformar o autoritarismo profundamente incrustado no sistema político e na sociedade.
 FOLHA DE SÃO PAULO, 25 DE MAIO DE 2016

May 26, 2016

Temer, a solução que virou problema

elio gaspari

 

Temer pareceu uma solução e tornou-se um problema porque depois da revelação do conteúdo da escandalosa conversa do senador Romero Jucá com o ex-colega Sérgio Machado, cobriu-o com os seguintes adjetivos: "competente", dotado de "imensa capacidade política" e "excepcional" formulador de medidas econômicas.

Segundo Temer, o ministro "solicitou" seu afastamento. Tudo bem, fez isso depois de se aconselhar com Elvis Presley, que está vivo. Sua ausência estaria relacionada com "informações divulgadas pela imprensa". Falso. O repórter Rubens Valente não divulgou apenas informações, transcreveu áudios e colocou-os na rede. Jucá tentou embaralhar a discussão e foi prontamente desmentido pela própria voz.
Temer nomeou Jucá para o Ministério do Planejamento sabendo quem ele era. O doutor celebrizou-se comemorando de mãos dadas com o notável Eduardo Cunha o fugaz rompimento do PMDB com o governo.

É impossível acreditar no que o governo disse na segunda-feira, mas é plausível supor que Temer e Jucá, homem de "imensa capacidade política", compartilhem visões da crise. O senador foi repetidamente apresentado como um dos cinco grandes conselheiros do vice-presidente, integrante do seu "Estado-maior".

Em sua conversa com Machado, Jucá produziu um retrato perfeito e acabado da oligarquia política ferida pela Lava Jato: "Tem que resolver essa porra. Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria".

Pergunte-se, o que quer "essa porra"? "Acabar com a classe política para ressurgir, construir uma nova casta, pura."

Desde que aderiu à fritura de Dilma Rousseff, Temer deu diversos sinais de antipatia objetiva e simpatia retórica pela Lava Jato. Pena.

Um trecho da fala de Jucá é significativo e preocupante:
"Estou conversando com os generais, comandantes militares. Está tudo tranquilo, os caras dizem que vão garantir. Estão monitorando o MST, não sei o quê, para não perturbar."
Jucá teve seu momento de vivandeira.

Os "caras" garantem a ordem no cumprimento da Constituição e não precisavam conversar com o doutor para reiterar esse compromisso. É bom que monitorem o MST e aquilo que Lula chamou de "o exército" de João Pedro Stédile. Contudo, salta aos olhos que para Jucá era conveniente misturar a manutenção da ordem com uma trama política escandalosa em relação à qual os militares nada podem fazer, pois a Lava Jato é assunto do Judiciário.

Felizmente Machado era um grampo ambulante. Ele chocou o país com a conversa e haverá de chocá-lo muito mais revelando o que sabe do PSDB, do PMDB e da Transpetro, que presidiu por dez anos, abençoado por Lula e pelo PT.

A primeira quinzena do atual governo pode ser malvadamente comparada à lua de mel de Marcello Mastroianni com Claudia Cardinale no filme "Il Bell'Antonio".

A ideia de que o atual governo possa aumentar impostos, mexer em leis trabalhistas e alterar os prazos para as aposentadorias de quem já está no mercado de trabalho é uma perigosa ilusão.

Se Temer tivesse formado o ministério de notáveis prometido pelo seu departamento de efeitos especiais, talvez isso tivesse sido possível. Jucá, um investigado pela Lava Jato, deixou o ministério e no seu lugar, interinamente, ficou um cidadão investigado pela Operação Zelotes.

O GLOBO, 25 DE MAIO DE 2016

ilustração andré mello 



May 11, 2016

CONTINUAREMOS


Em um país em transe, a ampliação potente da democracia — indo muito além da frágil falácia da transformação social como simples ampliação do acesso a bens de consumo — pressupõe o falar de muitas vozes, o descortinar de miradas e a ousadia de experimentar rumos que libertem as mulheres e os homens da nossa crônica doença do desencanto, nascida na negação da potência do que podemos ser.

Somos um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos capatazes, cultura do estupro, naturalização de linchamentos e coisas do gênero.

Acontece que, no meio de tudo isso e ao mesmo tempo, produzimos formas originais de inventar a vida onde amiúde só a morte poderia triunfar. Um Brasil forjado nas miudezas de sua gente, alumbrado pela subversão dos couros percutidos, capaz de transformar a chibata do feitor em baqueta que faz o atabaque chamar o mundo. Um Brasil produtor incessante de potência de vida, no arrepiado das horas e no chamado de uma pluralidade de deuses bonitos como as mulheres e os homens.


A luta por esse segundo Brasil, ao meu juízo, não me enreda porque acho que ela será vitoriosa: eu estou na briga porque acho que ela é necessária. 


Continuarei na rinha pela revolução do despacho na encruza, do reconhecimento do poder das senhoras e da alteridade da fala: língua do congo, canto nagô, virada de bugre na aldeia. Escrevo pela necessidade de outras gramáticas de compreensão do Brasil. Minha arma é o alfange do deus que é meu pertencimento, o senhor do mariô que mora em mim, iluminando, ao cortar os intolerantes, o meu mundo na viração da vida plena.


É hora de temperar a porta brasileira com dendê e apimentar o padê dessa canjira.


LUIS ANTONIO SIMAS

May 8, 2016

De boca na mortadela



Marcio Tavares D’Amaral

Dois países não podem conviver no mesmo território

“Nós” e “eles” prevaleceu. O tempo vai passar, haveremos de nos lembrar do tempo em que nos fazíamos boa companhia, e há de se restaurar um “nós” hoje (provisoriamente?) posto na geladeira. Preservado no frio da cordialidade suspensa. Apesar de tudo, melhor a geladeira. Ou dá bicho, e temos de nos jogar fora. No lixo de um ódio que, então, terá se tornado nosso novo modo de ser povo. Essa, sim, seria uma derrota. Uma para chorar. Se é que o ódio encontra motivos para chorar.

Hoje, tudo que se diga que vise ao estabelecimento de algum frangalhozinho de verdade encontra inevitavelmente a cantilena enjoada das crianças que precisam justificar junto à mãe os sopapos que meteram no irmão: “Foi ele que começou!”. Ainda vamos assistir a isso por muito tempo. Aliás, quem começou o quê? De que estamos falando quando a presidente da República e seu partido são acusados de terem “começado”? Lembro-me sempre do mapa de saída das eleições de 2014: o azul do Brasil e o vermelho da Nova Cuba. O impeachment começou ali. Dois países não podem conviver no mesmo território. Um deles fatalmente é invasor. E aos invasores, a guerra. Fez-se a guerra. O começo mais recente foi ali.

Já muito se disse, mas repito: num regime presidencialista a eliminação de um presidente é uma violência constitucional. Constitucional, mas violência. No parlamentarismo, o primeiro ministro, chefe do governo, não é eleito. Seu partido saiu das eleições em condições de governar, e o primeiro ministro será aquele ou aquela que tiver a sorte, ou o azar, de estar na posição eventual de líder da maioria. Primeiro ministro não tem mandato. Pode ser convidado a ir para casa por qualquer motivo, o mais tolo que seja, desde que a favor desse motivo se forme uma maioria eventual. De ocasião. O motivo pode ser tão bobo quanto não gostar de mortadela.

“Não gostar”, no regime presidencialista, não serve. Não tem nada a ver. A violência constitucional de jogar no chão uma pessoa eleita por prazo determinado precisa de fundamentos tão firmes que mesmo quem seja cego para eles possa ver. Fundamentos, nesse caso, significa: fatos gravíssimos, crimes inequívocos, vinculáveis direta e pessoalmente ao, ou à, presidente. É preciso haver um nexo gritante de causalidade. Dito de maneira simples: o fato não precisa só ser criminoso — ele precisa ser prévio. Já estar lá. Ser descoberto. E aí, porque há fato e possível atribuição de autoria, instaurar-se um processo.

Essa estrutura necessária é uma das formas que restaram do antigo amor que tivemos à verdade, e, parece, está em extinção junto com as baleias e os micos-leão dourados. Em falta de nome melhor, proponho chamá-la de “modelo judiciário da verdade”. Funciona assim. Dá-se um fato estranho. Ele não é natural, como uma tsunami, nem casual, como um pé torcido na travessia de uma rua movimentada. Alguém o produziu. É preciso saber com certeza quem. E estabelecer um certíssimo vínculo causal entre o fato e o feito. E então, sim, avaliá-lo. Conhecer sua verdade. Nutrir-se do gosto bom da verdade.

Quando esse fato pode ser considerado um crime, instaura-se um processo. É no processo que se verifica o objeto e se demonstra, ou não, a autoria. Isso quer dizer: se estamos falando da verdade, o objeto precede o processo. Se não é do desejo de verdade que se trata, a vontade de processo antecede. Fica no ar, equilibrando-se em nada, à procura do que possa morder. E como o equilíbrio em nada é muito desconfortável, morde na primeira aparência de objeto que venha ao seu campo de visão. O desejo de processo, quando é prévio, não está interessado na verdade, tem gosto de sangue. Há quem goste. Quando se trata de política, é uma perversão. Já muito se disse que na guerra a primeira vítima é a verdade. Quando a guerra é política, a primeira vítima é a democracia. E a democracia é só o que se interpõe entre a convivência, desejada ou tolerada, não importa, e a incivilidade. Entre a legitimidade, que pode até ser contestada, e a usurpação inconteste. Quando o processo antecede o objeto, o resultado é sempre uma violência. E não há Constituição que a cubra e legitime.

Há muitíssimas coisas que vão mal no Brasil. Crimes a rodo, lançados na roda todos os dias. São fatos. Antecedem os processos que precisam ser abertos para apurá-los. Justificam esses processos. E as sanções que decorrem deles. Que são necessárias e bem-vindas. Mas o que temos visto é um processo babando à busca de um objeto qualquer. Encontrou um, pulou sobre ele. Era do passado, não servia. Pegou outro. A fome era grande, e o desejo de verdade, nenhum. Montou-se um processo retardado, frágil, que só passaria mesmo movido por uma maioria eventual. Como no parlamentarismo. E deu-se o bote.

Caiu-se de boca na mortadela. Francamente.

 
O GLOBO, 23 DE ABRIL DE 2016 

May 7, 2016

Ocupação



Flávia Oliveira


Os professores da rede estadual do Rio de Janeiro entraram em greve no início de março. Foi reação aos cortes orçamentários impostos pelo governador licenciado Luiz Fernando Pezão, diante do caixa minguado, que já não dá conta de salários, aposentadorias, pensões. Três semanas depois, alunos do Colégio Prefeito Mendes de Moraes, na Ilha do Governador, ocuparam a unidade, em ato para apoiar a paralisação dos docentes e cobrar melhorias na rede pública de ensino. Na sexta-feira imprensada no feriadão de 21 de abril, quando a ocupação completara um mês, estive na escola.

Foi o Movimento Mapa Educação que organizou a roda de conversa com os secundaristas. Fomos Átila Roque, diretor da Anistia Internacional Brasil, Maria Antonia Goulart, do Movimento Down, e eu. O encontro, inicialmente, duraria hora e meia. Em verdade, passou de três horas, tamanho o apetite dos alunos por ouvir e, principalmente, serem ouvidos. Naquela tarde de outono infernal num auditório sem refrigeração, ficou provado que ocupação, definitivamente, rima com educação.

Antes do debate, que reuniu 30 jovens, circulamos pela escola. As instalações são confortáveis, exceto pela piscina mal cuidada. Os estudantes isolaram secretaria, laboratório de ciências, biblioteca. No corredor principal, montaram uma bancada com livros doados pós-ocupação. Eles varrem, limpam, cozinham. Não houve danos ao patrimônio público.

Os alunos não isolaram a escola. Professores que não aderiram à greve entram e lecionam; cursos ali sediados foram mantidos. Voluntários têm orientado atividades extracurriculares (de plantio de horta a oficinas de grafite e hip-hop) indisponíveis no calendário regular. No feriadão, foi organizada a minimaratona de rodas de conversa sobre democracia, cidadania, direitos humanos. Superada a desconfiança inicial, o encontro se transformou numa conversa franca sobre temas que preocupam a juventude, mas a escola ignora.

Os estudantes perguntaram sobre racismo, integração de pessoas com deficiência, machismo, feminismo, família, acolhimento, ativismo, futuro, direitos, caminhos. Os jovens brasileiros carecem de políticas públicas; estão expostos às maiores taxas de desemprego; são sobrerrepresentados no sistema carcerário; registram os maiores índices de evasão escolar. Rapazes são as principais vítimas de homicídios; moças não são informadas sobre como evitar a gravidez na adolescência. É perturbador constatar o quanto o diálogo anda afastado do ambiente escolar, o quanto a construção de pontes entre autoridades, sociedade civil, professores e estudantes não parece ser prioridade do sistema educacional.

No mês de mobilização estudantil, mais de 70 escolas foram ocupadas no Estado do Rio. As seguidas demandas por atividades letivas resultaram na ação “Doe uma aula” (aqui o link: http://bit.ly/1VBT8rl). Trata-se de uma campanha virtual em que cidadãos de qualquer formação se inscrevem para transmitir conhecimentos aos alunos da rede pública. É iniciativa não apenas bem-vinda, mas com potencial de se estender para os tempos sem greve.

Na última segunda-feira, a professora Anick Elias, de Língua Portuguesa, postou numa rede social a experiência do aulão especial de redação para o Enem 2016 que deu no Colégio Estadual Dom Helder Câmara, no Engenho de Dentro, ocupado havia uma semana. Na saída, uma aluna uniformizada pediu que ela falasse com a mãe ao telefone.

“Alô, professora? Está tendo aula mesmo? Ela disse que está na escola, que está tendo aula, mas eu não acreditei. Aula com greve? Nunca vi isso”, indagou a mãe ressabiada. “Fique tranquila. Estamos em greve, mas está tendo aula. Os alunos estão cuidando da escola. Eles fazem a comida, cuidam da limpeza, organizam o horário das atividades e acertam as aulas com os professores”, respondeu Anick.

O diálogo seguiu: “Tudo o que a gente quer é ver o filho estudando. Se a senhora está dizendo, fico mais tranquila”, devolveu a mãe. “Fique tranquila. Mas fique orgulhosa também. Sua filha está aprendendo mais do que em qualquer ocasião. Venha vê-la, venha sentir orgulho de sua menina”, completou a mestre.

Ao fim do depoimento, Anick Elias escreveu que o episódio ensinou a professora, aluna e mãe o significado da expressão comunidade escolar. Dois dias depois, a Secretaria estadual de Educação anunciou a antecipação para maio das férias escolares marcadas para agosto, sob o argumento de preservar o calendário letivo.

Ontem, alunos do também ocupado Colégio Estadual André Maurois, na Gávea, informaram que, desde o início da semana, estão sem créditos no passe de ônibus. Sem o vale transporte, os estudantes não terão como chegar às escolas. As ocupações serão desidratadas. E as autoridades fluminenses perderão a oportunidade de compreender (e aplicar) o conceito de comunidade escolar. É pena.


O GLOBO, MAIO DE 2016

May 3, 2016

Uma ponte para o passado


Em meio à profunda crise pela qual passa o Brasil, Michel Temer e seu partido, o PMDB, preparam-se para assumir o Palácio do Planalto e já discutem a composição do novo governo. Fingem não ter qualquer responsabilidade pelo governo Dilma e apresentam-se como salvadores da pátria. Até parece que nunca estiveram no poder e com as mãos em ministérios estratégicos, como Agricultura e Energia, por tanto tempo.

O partido tem até um rascunho de plano de governo: o documento “Uma ponte para o futuro”, produzido em outubro. Esse programa difere em quase tudo do plano de governo apresentado em 2014 por Dilma Rousseff. E supera o plano da quase-ex-presidente em pelo menos um detalhe: a ausência total de menções a desenvolvimento sustentável.

Nas 19 páginas do documento peemedebista, as expressões “meio ambiente”, “mudança climática”, “energia renovável” e “baixo carbono” não aparecem. Nenhuma vez. A ausência de qualquer menção a compromissos com estas agendas estratégicas é um péssimo agouro.

O pacote de maldades do PMDB, disfarçado de agenda para “reconstruir o Estado”, traz, entre outras, medidas como desvinculação de gastos da União com saúde e educação, desindexação de salários (inclusive o mínimo), ajuste fiscal, privatizações e desregulamentação ampla, geral e quase irrestrita. É neste ponto que se insere a única e indireta menção ao meio ambiente na “Ponte para o futuro:” a proposta de aumento da “segurança jurídica (...) para a realização de investimentos, com ênfase nos licenciamentos ambientais”. Nem precisa ser tão bom entendedor para saber que a frase significa flexibilizar os licenciamentos.

Quem duvida pode olhar o documento-irmão da “Ponte para o futuro”, a Agenda Brasil, de Renan Calheiros, que cria a figura do licenciamento ambiental “a jato” para obras de “interesse nacional”. Nada mais absurdo e nada mais PMDB. No Brasil da Samarco, de Mariana e do Rio Doce, quanto pior, melhor.

Os dois documentos refletem uma concepção de meio ambiente do século 19, totalmente apartada do desenvolvimento. Ou que, quando aparece, é como um entrave, que precisa ser eliminado para o bem do “ambiente de negócios”. Tal visão é um risco e um desperdício.

Um risco porque não é mais possível falar em desenvolvimento no Brasil sem fatorar os impactos das mudanças climáticas. Só no ano passado, 28% dos municípios brasileiros decretaram estado de emergência ou calamidade por desastres naturais ligados ao clima mais hostil. Do planejamento energético à produção de alimentos, tudo precisa ser revisto. Nenhuma retomada do crescimento poderá ser sustentada se não for também sustentável.

Um desperdício porque existem oportunidades para superar a crise econômica em setores como o de biocombustíveis, energias renováveis e agropecuária de baixa emissão de carbono. Que o diga a indústria de energia eólica nacional, que gerou cem mil empregos no ano passado enquanto o país mergulhava numa recessão de 3,8%, e que prevê a geração de mais 50 mil novos postos de trabalho em 2016, mesmo com agravamento da crise econômica.

Os governantes e aspirantes a governantes do Brasil fariam bem em olhar para a China neste momento. O país asiático, que entende de crescimento como ninguém, acaba de publicar seu Plano Quinquenal apostando em quatro eixos: serviços, inovação, redução das desigualdades e sustentabilidade ambiental — gerar empregos de qualidade no setor de tecnologias limpas.

O PMDB é um partido que sempre gostou muito de construir grandes obras, iguais às investigadas na Lava-Jato. Mas as pontes que seus caciques ora propõem ao Brasil nos conduzem ao passado, não ao futuro.

Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima

O GLOBO, 3 DE MAIO DE 2016