ROMANTIZAR OS ATOS DA CABELEIREIRA
DÉBORA DOS SANTOS E DA TURBA DO DE
JANEIRO SÓ SERVE À CÚPULA GOLPISTA
p o r MAUR ÍCIO THUSWOHL
A cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos tornou-se a musa de uma fábula.
Segundo a versão digna das“Mil e Uma Noites”,
essa mãe de família pacata e trabalhadora
foi compelida, em um momento
de transe, a um ato juvenil sem maiores
consequências: passar um batom na estátua
da Deusa Têmis que guarda a entrada
do Supremo Tribunal Federal. É como se
forças ocultas, mágicas, naquele tumultuado
domingo, 8 de janeiro de 2023, tivessem
conduzido o corpo da cabeleireira,
como no baile da Cinderela, entre pedras,
paus, gás lacrimogêneo e telefones celulares
até os pés do monumento. Lá, diante
da deusa, “Débora do Batom”, saudosa das
brincadeiras de infância, teria enxergado
em Têmis uma amiga da escola e feito uma
traquinagem. “Perreu (sic), mané”, borrou
em vermelho carmim. Um dos milhares
de invasores das sedes dos Três Poderes,
Débora dos Santos começou a ser julgada
pela Primeira Turma do STF. E a carruagem
da golpista virou abóbora. Até o momento,
dois ministros, Alexandre de Moraes
e Flávio Dino, votaram por uma condenação
de 14 anos de prisão.
Nas últimas semanas, o julgamento da
serelepe cabeleireira tem, no entanto, servido
de cortina de fumaça para os interessados
– e não são poucos – em minimizar a
gravidade da tentativa de golpe chefiada,
conforme a denúncia da Procuradoria-Geral
da República recebida por unanimidade
pelos juízes da Corte Suprema, por Jair
Bolsonaro. O ex-presidente aproveitou a
deixa. “Não sei o porquê de eu estar inelegível.
É uma injustiça, igual fazem com a
Débora por um batom”, afirmou no dia em
que se tornou réu. Não foi o primeiro e aparentemente
não será o último. Os bolsonaristas
usam o caso para disseminar nas redes
sociais mentiras sobre os processos em
curso. Garantistas de ocasião choram pelo
fim dos direitos individuais. O magistrado
Luiz Fux escorou-se na história para
se apresentar como a Nêmesis do colega
Moraes, lustrar a imagem de juiz rigoroso
no passado recente e demonstrar simpatia
pelas teses da defesa dos acusados.
E aquela porção da mídia que saliva diante
de qualquer quartelada exercita diariamente
uma indignação seletiva contra os
supostos abusos do Poder Judiciário.
Pelo seu physique du rôle, Débora dos
Santos deve ser uma mulher de fé, mas de
santa não tem nada. A cabeleireira, militante
do grupo “Patriotas de Campinas”,
largou os filhos, alvos de suas recentes
preocupações, em Paulínia, São Paulo, e
viajou 900 quilômetros até Brasília para
participar da “festa da Selma”. Sua desenvoltura
ao romper o bloqueio policial e
depredar a Praça dos Três Poderes, fartamente
documentada em imagens, levou o
Ministério Público a enquadrá-la em cinco
crimes: tentativa de abolição violenta
do Estado de Direito, golpe de Estado, dano
qualificado por violência e grave ameaça,
deterioração de patrimônio tombado e
associação criminosa armada. Para a Procuradoria-
Geral da República, não restam
dúvidas de que “Débora do Batom” sabia
exatamente o que fazia e as consequências
dos seus atos. “A denunciada permaneceu
unida subjetivamente aos integrantes do
grupo e participou da ação criminosa que
invadiu as sedes do Congresso e do STF e
quebrou vidros, cadeiras, painéis, mesas,
móveis históricos e outros bens”. A comoção
em torno do “drama” da pobre coitada
inspirou o presidente da Corte, Luís Roberto
Barroso, a repisar o nosso caráter
izoneiro. “No Brasil”, afirmou o magistrado,
“há a tendência de se passar muito rapidamente
da indignação à pena”.
Embora, em um movimento
estratégico para esvaziar o
alarido bolsonarista, o STF
tenha transferido a moça do
batom para a prisão domiciliar
enquanto o julgamento não termina,
nada indica prosperar na Corte uma disposição
para romantizar a sequência de
episódios que compõem a tramoia do golpe,
essa sim uma novela ao estilo mexicano.
“É um absurdo as pessoas quererem
comparar aquela conduta a algo sem gravidade.
Uma ré que estava há muito tempo
dentro dos quartéis pedindo intervenção
militar, que invadiu, junto com toda a turba,
e, além disso, praticou esse dano qualificado
que não foi uma simples pichação”,
explicou Moraes. O ministro afirmou querer
“desfazer a narrativa totalmente inverídica”
de que o Supremo está “condenando
velhinhas com a Bíblia na mão” que
apenas passeavam pelo STF, o Palácio do
Planalto e o Congresso. “Nada mais mentiroso
do que isso. Esse viés de positividade
faz com que nós, aos poucos, relativize
mos isso e esqueçamos que não houve um
domingo no parque. Absolutamente ninguém
lá estava passeando.”
Segundo o STF, 497 vândalos foram
condenados por participação nos atos de
8 de janeiro de 2023 .
Uma análise da distribuição das sentenças
desmonta a tese da mão pesada do tribunal.
Quase a metade das condenações
(240) foi de um ano de prisão convertido
em pena alternativa. Para a outra metade,
as penas variam de 11 anos e meio a 17
anos e meio. Do total de 1.586 denunciados,
oito foram absolvidos e 542 firmaram
acordos de não persecução Penal. Também
foram efetuadas 144 prisões (84 definitivas,
55 provisórias e cinco domiciliares)
e 61 pedidos de extradição. Quem
tem acima de 60 anos forma uma minoria.
Além de Débora dos Santos,
outros denunciados pelos
atos golpistas ganharam
certa notoriedade.
Acusado pelos mesmos
cinco crimes da cabeleireira, Leonardo
Rodrigues de Jesus, vulgo Léo Índio, é
um deles. Atocaiado na Argentina, Índio
é sobrinho de Rogéria Nantes, ex-mulher
de Bolsonaro, e primo em primeiro grau
do senador Flávio, do vereador Carlos e do
deputado federal licenciado Eduardo, auto-
exilado nos Estados Unidos. De acordo
com a denúncia da PGR, Léo Índio divulgou
nas redes sociais “imagens do momento
em que participava de atos de invasão
e depredação” às sedes dos Três Poderes
e “esteve envolvido em outras atividades
de cunho antidemocrático após as eleições
presidenciais de 2022, como manifestações
ocorridas em acampamentos erguidos
em frente a unidades militares”. Outro
golpista “famoso” é o mecânico Antônio
Cláudio Alves Ferreira, que durante a invasão
ao Palácio do Planalto destruiu um
relógio francês do século XVII que pertenceu
a Dom João VI. Condenado a 17 anos
de prisão em regime fechado, Ferreira
cumpre pena no presídio Professor Jacy
de Assis, na mineira Uberlândia.
Há ou não excessos da Justiça na punição
à turba de golpistas? Especialistas
consultados por esta publicação são unânimes
ao rechaçar a hipótese. Para Lênio
Streck, professor de Direito Constitucional
da Unisinos e pós-doutor pela Universidade
de Lisboa, não se pode falar em
exagero na pena proposta à cabeleireira.
“Ocorreu a construção de uma narrativa”,
afirma. “Deslocou-se a discussão do crime
de golpe e atentado para uma mera pichação.
É como se, em um assalto a banco,
o motorista não fosse imputado porque
foi multado injustamente por um guarda
enquanto aguardava os assaltantes. Ora,
ele é partícipe de um crime de roubo. Outro
exemplo é o olheiro do tráfico. Olhar,
espiar e avisar, em si mesmo, não é crime.
Mas o olheiro é partícipe de um crime
hediondo. É o caso da dita pichadora.”
Streck critica os setores da mídia que
embarcaram na tese do crime sem gravidade.
Como se fora possível, em termos
jurídicos, isolar uma ação no contexto de
um crime dessa envergadura. Se isolarmos
a pichação, logo será possível isolar a elaboração
da minuta do golpe. Alguém ‘apenas’
fez a minuta. E chegaremos ao fator
‘só fez isso’. É como aquele cara nos campos
de concentração que só vigiava.” Com
o isolamento de um ato em um crime de
empreendimento e participação, discorre
o professor, não teríamos a materialidade
do próprio crime. “O sujeito que defecou
em um gabinete não poderia ser condenado
à pena elevada. O ato de defecar no
máximo dá uma pena de um ano ou algo
assim. Ah, só defecou? Porém, não se trata
de um ‘defecador golpista’ nem de uma
‘pichadora golpista’. O direito é mais complexo
que uma narrativa jornalística.”
Professor de Direito Constitucional da
PUC de São Paulo, Pedro Serrano concorda
com a dose das punições por conta da
gravidade dos fatos. “O relatório da Polícia
Federal deixa claro que foi um evento extenso,
composto por vários atos e não por
um ato isolado. A tentativa de golpe não se
deu só no 8 de janeiro, ela implicou em uso
de arma e violência e na formação de uma
organização criminosa. Quem participou
dessa organização tem que estar sujeito a
penas mais intensas mesmo, e a lei prevê
penas duras para esse tipo de tentativa de
golpe. Uma lei, diga-se, aprovada no governo
Bolsonaro e sancionada pelo próprio.”
Professora associada de Direito da PUC
do Rio de Janeiro, Gisele Cittadino acredita
que no caso de Débora dos Santos as
mentiras divulgadas nas redes sociais causaram
forte impacto. “Muita gente passou
a acreditar que a moça havia sido condenada
a 14 anos de prisão por ter usado um
batom para pichar uma estátua. Não mencionaram
os demais crimes corretamente
imputados.” A comoção em torno da cabeleireira,
elabora a professora, revela uma
peculiar faceta da “opinião pública”. “Trata-
se de uma moça de classe média, branca,
com filhos pequenos. Há uma quantidade
impressionante de mulheres pretas
encarceradas no Brasil que praticaram
crimes sem nenhum potencial ofensivo,
com crianças pequenas desamparadas.
Não ouvimos nenhuma voz a apoiá-las.”
Cittadino também não vê
exagero na dosimetria das
penas aplicadas. “A norma
jurídica foi inteiramente
respeitada.” Há dois pontos,
acrescenta, a destacar no debate sobre
o alegado excesso de anos a serem
cumpridos em regime fechado. “Em primeiro
lugar, a manipulação política que
tenta vender a ideia de que houve apenas
uma depredação do patrimônio público,
sem uso de armas, praticado por gente
sem antecedentes criminais. Tal crime
foi consumado, mas o fundamental aqui
são aqueles de tentativa de golpe e abolição
violenta do Estado de Direito. Se o patrimônio
público pode ser reposto, quantas
vidas o País teria perdido se o golpe
fosse consumado? Quantos projetos pessoais
seriam interrompidos?” Nenhum
setor da vida política, econômica e social
do Brasil deixaria de ser afetado pela rup-
tura constitucional que havia sido planejada
por Bolsonaro e seu entorno, insiste.
“Corremos um risco brutal de um retorno
ao autoritarismo, desta vez tendo
no topo do poder político um homem cuja
história é marcada pela defesa da tortura,
da morte e da celebração da ditadura.”
Um questionamento feito
pelos bolsonaristas às
condenações impostas
pelo STF diz respeito a
uma supostamente indevida
soma das penas previstas para os crimes
de golpe de Estado e de abolição violenta
do Estado de Direito, que seriam semelhantes.
O ponto gera debate. “A principal
discussão se baseia no princípio da
consunção, quando um crime-meio é consumido
pelo crime-fim. Diante dessa teoria,
não se pode condenar alguém por utilizar
um determinado meio para atingir
um determinado fim, quando esse meio e
esse fim estão capitulados como um só delito”,
pondera o advogado Marco Aurélio
de Carvalho, coordenador do Grupo
Prerrogativas. “Temos defendido desde o
início que é fundamental individualizar
as condutas para a correta e adequada do-
simetria das penas. Não podemos abandonar
a defesa intransigente desse princípio
na hora de quantificar a pena de cada
um dos envolvidos.” Para Serrano, os
dois crimes operam em consunção. “O
crime mais grave absorve o crime menos
grave quando a conduta de um implica no
outro. Parece-me que tentar um golpe de
Estado implica em atentar contra o Estado
de Direito, não seriam duas penas.” Em todo
caso, ressalta, uma mudança de entendimento
por parte do STF reduziria muito
pouco as punições aplicadas. “Não deixariam
de ser penas graves com necessidade
de iniciar sua execução em regime fechado.
Nesse aspecto, as penas estão corretas,
não estão fora do parâmetro legal.”
Após os votos de Moraes e Dino pela
condenação a 14 anos em regime fechado,
o julgamento de “Débora do Batom”
foi interrompido por um pedido de vista
de Fux, celebrado como uma vitória pelos
bolsonaristas. Na sexta-feira 28, Moraes
atendeu a um parecer da Procuradoria-
-Geral da República e autorizou a cabeleireira,
detida desde março de 2023, a cumprir
prisão domiciliar até o resultado. Fux
sinalizou ainda a intenção de discutir o
tempo de prisão. “Me deparo com uma pena
exacerbada. É por essa razão que eu pedi
vista desse caso. Quero analisar o contexto
em que essa senhora se encontrava.”
Em seu depoimento à PF, e em contraste
com o comportamento anterior, “Débora
do Batom” fez um gesto de contrição. “Naquele
dia eu me senti diferente da pessoa
que eu realmente sou. Eu me arrependo
muitíssimo, jamais faria isso em sã consciência.
O calor do momento alterou minhas
faculdades mentais.” O arrependimento
parece ter comovido Fux. “Debaixo
da toga bate um coração”, declamou o
juiz durante o julgamento que recebeu a
denúncia contra o núcleo central do golpe.
Na concepção de mundo de Bolsonaro,
o “mito” da cabeleireira, a arrependida
provavelmente deu uma fraquejada.
É necessário, diz Serrano, aguardar
os fundamentos da decisão de Fux sobre
a “moça do batom” para avaliar se o
voto terá consequência na situação jurídica
dos demais casos. “É impossível fazer
essa análise agora.” Segundo Carvalho,
a divergência do ministro “legitima
o julgamento e esvazia o argumento de
que houve pressão da opinião pública
ou de que os ministros estavam atuando
em conluio para condenar”. O coordenador
do Prerrogativas avalia que Fux
pode até influenciar um ou outro ministro,
mas reforçará, ao fim e ao cabo, a independência
da Corte. “Ninguém vai poder
dizer que foi um julgamento político,
que ocorreu por conta de pressão da imprensa,
sem que os ministros tivessem liberdade.”
Streck lembra que uma eventual
posição do magistrado pela redução
das penas em nada alterará a situação, a
menos que seja seguida por mais dois ministros
da Primeira Turma do STF, possibilidade
remota de acontecer nos casos
de Carmén Lúcia e Cristiano Zanin. “Há
problemas técnicos para a redução porque
a expressiva maioria das sentenças
já transitou em julgado. Causa finita. Como
fazer? Difícil dizer. Talvez um habeas
corpus de ofício englobando a todos.”
Diante das reduzidas chances
de livrar a cara de
Bolsonaro e associados
no Supremo, os bolsonaristas
no Congresso voltaram
a propagar a tese da anistia. Desde a
recente decisão da Corte, o ex-presidente
mergulhou nas negociações congressuais
e entabulou conversas com o governador
do Paraná, Ratinho Júnior, e com o secretário
de Relações Institucionais de
São Paulo e dono do partido, Gilberto
Kassab, em busca do apoio do PSD à proposta
que finge proteger os direitos fundamentais
de Débora dos Santos e assemelhados
do massacre da Justiça, mas é feito
sob medida para salvar a cúpula golpista
e recolocar o capitão no páreo eleitoral
de 2026. Há quem, na base governista, tema
o sucesso da empreitada. “É uma matéria
arriscada. A possibilidade de aprovação
não está descartada porque a articulação
deles é muito pesada. Os deputados podem
acabar votando de olho nas eleições
do ano que vem, não vão querer perder voto”,
avalia o deputado federal Lindbergh
Farias, líder do PT na Câmara. Para outros,
os parlamentares do Centrão valem-
-se da ameaça da anistia para barganhar
mais recursos de emenda e mais influência.
O presidente da Câmara, Hugo Motta,
do Republicanos, parece pouco disposto
a comprar a briga dos bolsonaristas, apesar
de camuflar suas intenções. Resistirá
à pressão? “É preciso buscar o equilíbrio,
não podemos nos desviar para o erro fácil.”
O deputado promete, ao menos, não pautar
o tema em regime de urgência. Em reunião
com lideranças bolsonaristas, Motta
ouviu do líder do PL na Câmara, Sóstenes
Cavalcante, que a oposição vai adotar a tática
da obstrução até o projeto ser pautado.
As primeiras tentativas de bloquear os
trabalhos do Congresso não funcionaram.
Existe uma pressão da bancada bolsonarista
para o Centrão abraçar a pauta,
observa Talíria Petrone, do PSOL. “As pesquisas
mostram, no entanto, que a maior
parte dos brasileiros é contra a anistia.
Não é possível perdoar quem tentou dar
golpe de Estado no Brasil, constituiu organização
criminosa para atacar as liberdades
democráticas e as instituições e participou
da construção de um plano para assassinar
o presidente da República, o vice
e um ministro do Supremo.” A bancada da
legenda, diz a parlamentar, não vai medir
esforços para impedir o avanço do tema.
“Por ter havido anistia lá atrás, após a ditadura
civil-militar, é que ainda existem
grupos no nosso País que seguem avançando
com um projeto autoritário, contrário
às liberdades democráticas e que não
respeita as instituições. Vejamos o exemplo
lá de trás, quando se anistiou torturadores.
Se o Congresso aprovar a anistia,
vamos repetir esse passado tenebroso. Diversidade
e pluralidade são a essência da
política. Ataques às liberdades democráticas
não podem ser perdoados.”
A eventual aprovação da anistia extrapolaria
as paredes do Congresso. A lei seria
inevitavelmente judicializada e caberia
ao Supremo avaliar se ela respeita ou
não a Constituição. A resposta parece clara.
O que aconteceria no País se o STF invalidasse
a legislação? O Brasil mergulharia
em uma crise institucional, com consequências
imprevisíveis para a economia?
Haveria outra tentativa de golpe? Essas
são perguntas que deputados e senadores,
supostamente imbuídos do propósito
de “pacificação”, precisam responder.
CARTA CAPITAL